segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Baladas, Palavras e Outonos - Por Gilfrancisco Santos


Baladas, Palavras e Outonos


GILFRANCISCO; jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe


Será lançado no Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Espaço Cultural Ministro Carlos Ayres de Brito, no dia 12 de novembro, às 11 h o DVD duplo “Baladas, Palavras e Outonos”, de autoria das poetisas Carmelita Fontes, Gizelda Morais e Núbia Marques, com apresentação de Luiz Eduardo Oliva, Diretor Presidente/Segrase. O livro é mais um lançamento da Editora Diário Oficial, comemorativo da passagem dos dez anos da morte da escritora Núbia Marques (1927-1999).

Afirmam alguns que o ato de criação poética é vista como o correlato da sedução que prepara o ato amoroso em si. Na verdade, os caminhos de Gizelda Morais, Carmelita Fontes e Núbia Marques pela criação artística, a um só tempo simples e ousados, renovadores e rotineiros, sagrados e profanos, vivem a nos desafiar, a intrigar público e crítica. E porque não dizer; uma poesia ardente e carinhosa que nos ampara com toda a felicidade do mundo.

Em 1960, Austrogésilo Santana Porto publica O Realismo Social na Poesia em Sergipe, um estudo regional importante focalizando a poesia sergipana no Movimento humanista revolucionário que tem em José Sampaio o seu mais lídimo representante, inclui na segunda parte do estudo denominado de Os Novos, duas jovens poetas: Gizelda Morais e Núbia Marques. Sobre a primeira diz ser “seu maior anseio é o amor humano, essa necessidade de compreensão para a superação de tudo que origina a angústia ou a tristeza nos corações humanos.” E sobre Núbia não poupa à análise “a verdade é que parece ser esse espírito da solidariedade humana que lhe conduz os passos para o realismo social. Assim, sua poesia se torna cada vez mais profundamente humana, num anseio crescente de fraternidade”.

A criação poética das três poetas, que representam em Sergipe e nacionalmente, a consolidação do Modernismo literário feminino, se afirmou com a publicação de livros individuais e projeção na área da produção cultural no estado, quer como jornalistas militantes em periódicos ou membros de entidades literárias, como o Movimento Cultural de Sergipe, Clube Sergipano de Poesia e Academia Sergipana de Letras.

“Baladas, Palavras e Outonos” impõe também emoções, cuja linha musical da obra; trata do sofrimento, do amor, da solidão na forma mais elevada da expressão e da análise artística. Há muito tempo a nossa poesia feminina tem sido sacralizada por essa trinta de ouro, que chegam com todas as palavras, baladas e outonos. O que mais surpreende nesse livro é à força da tríplice aliança, que as une aos poemas como num só grito. Essa trinca marcou presença no panorama da poesia em Sergipe, um novo continente que renasce das sombras rápidas do passado para descobrir os seus ignorados tesouros, no momento que se comemora dez anos do desaparecimento de Núbia Marques.

Todas as três poetisas cultivaram a fama de conquistar sua liberdade, de afastar-se do convencional, impulsionadas por um amor profundo, que contestava a produção artística e cultural dominante no país. Temos em mãos um livro que o leitor de poesia não pode desconhecer.


Trevas - Núbia Marques



Que angústia é essa
sem pouso nem regaço?
Que medo é este
que alarma as primeiras horas da manhã?
Que dor é esta
que traz no seu desatino os nati-mortos do amor!
Flores espalham-se entre assombros
A espada é mais que lírio
As árvoes despidas,
mendigas do carinho
plantadas no chão das madrugadas
morrendo antes da primavera


Que homens são estes
que têm na mão o estigma da morte?
Que agonia é esta
assanhada por ventos perplexos?
Que desengano é este
que arrasta consigo as trevas da voz
paridas pelo caos:

É a noite poeta
E a morte sem termo
o desespero o terror

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Célio Nunes - Por Gilfrancisco




O jornalista e contista Célio Nunes


GILFRANCISCO – Jornalista, professor da Faculdade São Luiz de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.



Foi durante a realização do V Fórum de Poesia, em outubro de 1993, onde apresentei uma comunicação sobre Vladimir Maiakóvski (1893-1930), que conheci pessoalmente Célio Nunes, apresentado pelo jornalista Paulo Afonso Cardoso da Silva, época em que era diretor de redação do extinto Jornal da Manhã (hoje Correio de Sergipe), cujas páginas abrigou o suplemento cultural Arte & Palavra (1990-1993), por ele idealizado.

Célio Nunes da Silva nasceu a 11 de outubro de 1938 em Aracaju, filho de José Nunes da Silva e Júlia Canna Brasil e Silva, fez seus estudos nesta capital, primeiramente no grupo General Valadão e depois no colégio Atheneu Sergipense. Seu pai, operário gráfico, de jornais e da Escola Industrial (antiga Escola Técnica), foi lider classista, desde á década de 20, ligado ao movimento comunista e ao Centro Operário Sergipano, onde fervia todo o movimento operário sindical, inclusive com passeatas, greves e edições de jornais. Por isso foi preso em 1935, pelo Interventor Eronides de Carvalho, voltando a ser processado pelo golpe militar de 1964.
Aos 22 anos de idade foi residir na Bahia, em Salvador e em Itabuna, região Sul, onde morou por mais de uma década, exercendo o jornalismo profissional - foi repórter, redator e correspondente no Sul da Bahia dos jornais: Tribuna da Bahia, Jornal da Bahia e A Tarde;- trabalhou em jornais de Itabuna e Ilhéus - e exerceu funções públicas no Estado da Bahia, entre as quais Diretor da Divisão de Cultura da Prefeitura de Itabuna e Diretor da Câmara Municipal de Itabuna. Célio Nunes participou ativamente do movimento cultural do Sul da Bahia, inclusive do movimento de Teatro Amador. Teve publicados trabalhos literários, principalmente, contos, em jornais, revistas e coletâneas na Bahia: Conto 2, Itabuna, 1967 e Moderno Conto da Região Cacaueira (org.) Telmo Padilha (1930-1997), 1978.

Em 1972 retornou a Sergipe, trabalhando na impressa e no serviço público. Foi incluído nas antologias, Contos e Contistas Sergipanos (org.) Núbia Marques (1929-1999 ), 1972; e Prosa Sergipana (org.) José Olyntho e Márcia Maria, 1992. Em 1980, publica Trajetória para a Ilha dos Encantados, Aracaju, Edições Desencanto, 94 pp., em que reúne contos produzidos entre 1965 e fim dos anos setenta, segundo ele, “ Elaborados em várias épocas, não sei se apresentam algo característico/individual que permaneça implícito na minha saga no mundo da ficção. Desde cedo que escrevo, coloco na gaveta, retomo idéias, grande parte de trabalhos abandono, renego, rasgo, perco, outra parte guardo como significação apenas de um momento, lado afetivo/sentimental; a angústia existencial, os caminhos e descaminhos, o pré-auto-jugamento, são obstáculos na decisão de divulgar o que às vezes considero sem significação”.
Naquele tempo de dispersão e oportunismo, o contista Célio Nunes é um dos que reagiram e optaram pela transgressão da linguagem, com um espírito requintado, carregado pelo fetiche da arte de narrar. Com a publicação de Réquiem para José Eleutério (abas de Léo A. Mittaraquis), Aracaju, Funcaju, 224 pp, 2000, Célio Nunes parece assumir, de uma vez por todas, a magia de transformar palavras em imagens, imagens em vivências capazes de impressionar profundamente o leitor. Não é preciso avançar muito em sua leitura para que a essência da obra se revele. Os contos de Réquiem para José Eleutério (quinze contos e uma novela), possuem uma homogeneidade de concepção que os situa numa mesma pauta e num mesmo ritmo de realização formal.
Célio Nunes, finalmente, retoma a sua trilha, na perplexidade da sua caminhada entre desencontros, mistérios e indagações, com a determinação única de contar histórias e com a convicção de que não está sozinho, pois necessita dividir suas angústias, desilusões e ilusões. Tendo como matéria-prima, o dia-a-dia, Célio Nunes o transforma em seus contos de maneira magistral, extraindo do cotidiano o humor, o drama, a ironia, o lirismo, a luta, o sonho humano, o brilho das ilusões, o agudo, mistério dos encontros e os caminhos que se cruzam e entrecruzam.
O contista Célio Nunes, como uma energia da natureza, cuja voz é a própria matéria germinal do universo, consegue em seus contos ilustrar com clareza seu pensamento, procedendo por um preciso esquema de montagem, para chegar à demonstração do que é ser um bom contista, entregando ao leitor uma valiosa contribuição na leitura daquilo que acontece. Como ficcionista, Célio Nunes nos dá mostras de profundo conhecimento da matéria e de incomum e lúcida capacidade de penetração, quanto a forma, ao processo da narrativa e à construção de idéias.
Escritor singular tanto na inventividade quanto na armação plástica de cada conto, Célio Nunes utiliza-se de uma linguagem enxuta, estilizada, incensurável que sobrevem como uma resultante desse fluxo poético que valoriza definitivamente sua narrativa. Apesar de todos seus vaivéns, e ainda com todas suas contradições, é um dos poucos nomes mais significativos, tanto por sua qualidade própria, como por sua influência, no conto das últimas décadas nas letras sergipanas, embora mantendo-se relativamente à margem desse processo. Por isso sua contribuição é mais difícil de reconhecer, o que não implica seja menos poderosa e atuante ao longo dos anos.
Outro aspecto que destaca o contista Célio Nunes é que está sempre de olhos bem abertos, fala dos intricados caminhos das relações humanas; as palavras têm a generosidade e o desespero de se darem a ver, a sentir, tudo aqui e agora, em perfeita sintonia com a visualidade do nosso tempo.
É preciso remarcar ainda a presença de uma linguagem amadurecida e forte, a boa capacidade de fabulação, que dão a esperança de que Célio Nunes tenha mais coisas para nos oferecer. Em 2005, publicou mais outro de contos; O Diário de W. J. e outras histórias. O conjunto de sua obra foi saudado pela crítica especializada, comprovando o talento deste que é hoje um dos mais importantes autores sergipanos. Como cronista literário, através da coluna "De 7 Em 7", atuou no jornal semanário, Cinform, entre os anos de 2005 e 2006.


Microcontos

Levado pelos amigos Paulo Afonso Cardoso e Wagner Ribeiro que insistiam na publicação do livro Microcontos, Célio Nunes, juntamente com o filho e também jornalista Claudio Nunes, procurou o diretor-presidente da Segrase - Serviços Gráficos de Sergipe, Luiz Eduardo Oliva, para viabilizar a edição através da Editora do Diário Oficial. Acertada a parceria e iniciada a editoração, fomos surpreendidos com a morte súbita do autor.

Experimentalista de grande humor e criatividade literária, Célio Nunes é o autor de reconhecida literariedade. Em Microcontos, demonstra mais uma vez seu talento de contista, exibindo uma técnica narrativa muito moderna, numa ficção altamente criativa, para atingir a técnica mais apurada do contador de casos, escrevendo em estilo desenvolto e preciso. Cada conto de Célio Nunes é uma metáfora do real, parte sempre da realidade concreta e a transfigura: partindo de um simples episódio, constrói o seu micromundo ficcional, captando pedaços de vida, aspectos escondidos da realidade, um olhar quase oculto, um rosto, um segredo, um silêncio.

Em Microcontos, o contista megulha em si mesma, numa sondagem da próprio intimidade, uma literatura composta numa linguagem abrandada e doce, como se desejasse penetrar no interior das coisas. Nesse mais recente trabalho procurou a transcedência - o lugar de todos os tempos, fora do tempo, o único espaço que escapa à morte. Nestes anos de atividade intelectual Célio Nunes publicou. além dos quatro livros de contos, centenas de artigos literários, cuja a diversidade e engajamento formam as duas características que mais ressaltam em sua obra. Como poucos deu a sua obra um caráter empenhador procurando sempre atribuir-lhe uma função, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista estético cultural. Assim, Célio Nunes firmou sua fama de excelente contista. Sobre o livro, diz Plinio Aguiar "o que o escritor sergipano Célio Nunes chama de mocrocontos configura-se como um texto com poucas linhas, dosado com alta densidade ficcional e, como característica peculiar de sua prosa, enveredando pelo insólito, buscando surpreender sempre o leitor".


Falecimento


O jornalista e contista Célio Nunes morreu no final da manhã de 13 de agosto de 2009 em sua residência, à rua Carlos Burlamarqui, vítima de infarto agudo do miocárdio, aos 72 anos. Seu corpo foi velado na Osaf e o sepultamento realizado às 10 horas do dia seguinte no cemitério Santa Isabel. Simples, amigo de todos e amante da cultura sergipana, Célio Nunes iniciou-se no jornalismo nos fins dos anos 50, no seminário Folha Popular, órgão do Partido Comunista. Integrante da União da Juventude Comunista e do PCB, em 1959 vai para Salvador para concretizar o sonho de ser jornalista. Trabalha no Jornal da Bahia, depois na Tribuna da Bahia,mas fixa residência durante 13 anos em Itabuna, onde residia seu irmão, o poeta e também jornalista, Hélio Nunes, proprietário de uma pequena gráfica, onde editava o Jornal de Notícias. Além de desempenhar suas funções de jornalista no Diário de Itabuna e nos tablóides Desfile, Flâmula e SB Informações & Negócios. Em Ilhéus, teve passagem pelo Diário da Tarde e Correio de Ilhéus, dedicou-se a atividades culturais na região: diretor da Secretaria da Câmara de Itabuna e diretor do Departamento de Cultural da Prefeitura. Em 1964 durante o regime militar, ainda residindo em Itabuna foi preso pelo Exército por apoiar as Ligas Camponesas na invasão à cidade de Belmonte.
Retornando a Salvador em 1972, cursa os primeiros semestres do curso de jornalismo da Universidade Federal da Bahia – UFBA, registrado como jornalista profissional conforme lei de regulamentação de 1971, abandona o curso. Retornando a Aracaju, foi assessor de imprensa do antigo Condese e depois da Secretaria de Planejamento onde se aposentou. Trabalhou ainda na Gazeta de Sergipe (redator), Jornal da Cidade (redator e editor); e no Jornal da Manhã (redator, editor e diretor geral), onde criou o suplemento cultural Arte & Palavras que marcou sua passagem no cenário literário, divulgando poetas e escritores sergipanos, que não dispunham de maiores espaços nos jornais diários.
Fundador do Sindicato dos Jornalistas de Sergipe, do qual foi presidente por suas vezes; membro da direção da Federação Nacional dos Jornalistas; Presidente da ASI – Associação Sergipana de Imprensa; chefe da Assessoria de Comunicação da UFS; Membro do Conselho Estadual de Cultura; Diretor-Presidente da Segrase – Serviços Gráficos de Sergipe. Publicou quatro livros de contos: Contos (1963); Trajetória para a Ilha dos Encantados (1980); Réquiem para José Eleutério (2000); O Diário de J.W. E outras Histórias (2005).









CLEOMAR BRANDI - por Gilfrancisco Santos

Foto de Jorge Henrique Oliveira


Cleomar Brandi, um Professor de vida que todo aluno gostaria de ter.

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de França, membro do IHGS e consultor editorial da Segrase.


"sou um homem muito feliz, porque eu não sou um homem solitário"


Cleomar Ribeiro Brandi nasceu no dia 18 de janeiro de 1946, na cidade de Ipiaú (Mesorregião Sul-baiano). Sua carreira de jornalista tem início no IRDEB - Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, foi lá que o conheci, no tempo do historiador Cid Teixeira (Pergunte ao José). Lá Cleomar fez parte da primeira equipe de redação da Rádio Educadora da Bahia, AM e FM. Em Aracaju há 24 anos começou no jornalismo sergipano na Rádio e TV Aperipê, passando pelo Jornal de Sergipe, TV Sergipe, TV Jornal, Delmar FM, Revista Sergipe, TV Caju, Tribunal de Justiça (onde foi responsável pela revista Judiciarium. Em 2004 com o publicitário e cantor Paulo Lobo, lançam o Jornal da 13, depois transformado em revista. Sua vinda para Aracaju foi motivada pelo convite de Raimundo Luiz, que na época era secretário de João Alves, para fazer parte da equipe da implantação da TV Aperipê e logo aceitou o convite que se somou a um antigo desejo de ficar próximo ao irmão que já morava aqui.
Reencontrei Cleomar em abril de 1997, numa tarde/noite chuvosa no Bar e Restaurante Crase (hoje O Renatão), ao lado do Iate Clube), quando eu lançava pelo UNIT/Editora BDA, o livro Gregório de Mattos:o boca de todos os santos. O tempo estava molhado por uma chuva miúda, triste e constante, como diria Jorge Luís Borges, era "uma chuva minuciosa", mas nada desanimou nosso reencontro patrocinado pelo amigo editor Ubirajá Campos, uma noitada de muitos casos, muita falação sobre os companheiros das letras baianas. Recordamos dos encontros com Raulzito (Raul Seixas), Perinho Santana, Thildo Gama, Waldir Serrão, as matinés do Cine Roma, viajamos pelo interior do Instituto Normal da Bahia, onde estudamos em épocas diferentes, localizado no barrio do Barbalho, citado por Gilberto Gil na canção Tradição “conheci uma garota que era do Barbalho/uma garota do barulho/namorava um rapaz que era muito inteligente/um rapaz muito diferente”.
Comenta ele, saboreando uma loira gelada “o que bem me lembro dessas escolas é que se valorizava muito a educação formal e a leitura e redação diária eram obrigatórias, tanto assim que tínhamos que fazer ditado, dissertação, redação e composição e saber distinguir cada uma delas, o estilo e tudo mais. Acredito que isso ajudou muito em minha carreira futura de jornalista”. A partir dessa visitação, passei ao convívio amoroso e gratificante do sábio coiote, que contava várias farsas históricas dos homens públicos de Sergipe. Via semanalmente na redação do Jornal da Cidade ou o encontrava em algum boteco da cidade e sempre dávamos continuidade as lembranças da velha e triste Bahia gregoriana, em noitadas etílicas: Bar do Sapatão, Amanda, Arrumadinho do potiguar Benício, Toca do Coelho ou na residência de alguma dama de verde, ou uma socialite verdeluz. Depois da farra, levava-o até a sua residência ao lado do G Barbosa da Avenida Francisco Porto, ficava numa ruinha que na Bahia a gente chama de beco. Ia seguindo sua fofinha brasília cor de mel ao chegarmos eu retirava do carro a cadeira de rodas, o acomodava até que ele adentrasse á residência.
Por mais de uma vez o encontrei no Teimond com seu irmão, jornalista do matutino baiano A Tarde, Francisco Ribeiro, o Chico Neto, que me deu guarida nos anos 70, juntamente com o saudoso amigo Luiz Orlando e Celinha, quando me dirigia a Buenos Aires, época em que Chico morava em Porto Alegre e trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil. Bons momento passamos na Borges de Medeiros, longas caminhadas pelo Parque Farroupilha e uma bebedeira infernal no restaurante de Lupicínio Rodrigues.
Deixemos que o próprio Cleomar dê um testemunho sobre sua infância na cidade natal: "pescávamos belos piaus de cima do cais: plataforma exata para grandes mergulhos na água que nos acolhia. O grande abacateiro do quintal era a grande vigia de onde lá de cima, me sentia Robinson Crusoé, os babas com os irmãos, os filmes do Cine Theatro Éden, o cheiro do pão fresco saindo do grande forno da Padaria Minerva, a manteiga derretendo no milagre do pão quente e aberto, as histórias de assombração, as brincadeiras de guerra nas pilhas de cacau do grande armazém de Tio Coló, os bois soltos nas ruas nos dias de matança, um corre-corre danado e a gente jogava sal no fogo, pois diziam que deixava os animais mais brabos".
Cleomar Brandi, um dos intelectuais mais respeitados e admirados de Sergipe, escritor talentoso, jornalista brilhante, ético e responsável. Muitos aprenderam sobre o exercício do jornalismo sadio ao ler, os seus artigos pelas páginas do Jornal da Cidade, influente periódico da capital sergipana. Lições de cidadania, respeito à democracia, defesa da liberdade, compromissos com a ética foram transmitidas em suas crônicas, ao longo desses anos. Enquanto instrumento para a prática do bem, nosso Cleomar ético, íntegro, intelectual amplamente respeitado e admirado, engrandecendo a todos com a sua bondade e sempre manteve o coração terno, puro, cheio de amor e desprendimento. No jornal, ensinou com sabedoria; criticou com firmeza e serenidade; defendeu com eficiência seu ponto de vista; reanimava os desalentados; pelo jornal, reerguia quem um sofrimento abatera. Seus artigos, escritos com maestria, sobre livros e escritores (Osmário Santos, Gilfrancisco, Marcelo Ribeiro), artes e artistas (Márcia Guimarães, Leonardo Alencar), religião e religiosos (Senhor dos Passos), lhe enalteciam as qualidades, mas não alardeavam os equívocos que eventualmente descobrisse no texto ou na obra que lhe mereceu a atenção. Sabe Cleo, você me lembra o querido Ariosvaldo Mattos no Jornal da Bahia, aquela candura, aquele jeito todo seu de ensinar aos necessitados.
A crônica, nos dias de hoje, procura ater-se mais às coisas concretas e às relações humanas perceptíveis, necessidade da referencialidade intensiva. Nesse livro de estréia “Os Segredos da Loba", capa e ilustrações do artista plástico Leonardo Alencar, contou com o apoio cultural da Fundação Aperipê e do Governo Estadual de Sergipe. São 71 crônicas recheadas do bom tempero baiano, que tratam dos costumes, política, de amor, de boemia e outros parangolés, em sua maioria publicada no Jornal da Cidade escritas ao longo da sua permanência em Aracaju. As crônicas revivem a mesma tensão que sofre o equilibrista que anda no gume da faca e, por isso, não pode cometer o menor descuido sob pena de cair para a esquerda ou para a direita; vive um risco presente e continuado, luminoso e linear, como o imigrante, vê as coisas com olhos de estranho, e assim pode ver coisas que as pessoas com raízes mais tradicionais muitas vezes não vêem. E dessa forma multiplicaram-se a paixão solidária, o impulso incessante de criar e de amar e a capacidade de indignação ante a injustiça. Segundo ele, um intelectual, sobretudo num país como o Brasil, não tem o direito de se eximir.
O jornalista Cleomar Brandi recebeu diversas condecorações, entre elas a Medalha do Mérito Cultural Ignácio Barbosa, o prêmio ganho no concurso de crônicas, Cidade de Aracaju e o título de Cidadão Sergipano, concedido, graças à iniciativa da deputada Susana Azevedo. Os dias lhe dariam razão: "Aqui, tenho amigos, história para contar". Presença viva e forte nos círculos intelectuais da cidade, principalmente aqueles menos conformistas, e, de preferência, irreverentes, Brandi é um comunista à moda baiana, um socialista tropicalista, um anarquista moreno, um nacionalista renovado de Policarpo ou um coiote arizonense, sobretudo um apreciado de uma boa fêmea, por isso acredita em Deus, acredita no poder da fé dos Orixás.
O dia em que você partir fará muita falta, não só aos amigos, a essa doce terra que nos acolheu, mas a história do jornalismo sergipano onde aperfeiçoara sua formação, graças a fibra nordestina, nosso DNA e o verniz do aprendizado da Escola Normal da Bahia de que tanto nos orgulha. Pessoas como Cleomar Brandi está em extinção, raríssimos dos aqui nascidos são tão sergipanos quanto você. Nesta lúcida síntese, resta-nos, garantir-lhe a sua imortalidade. Foram essas credenciais e mais aquelas derivadas de sua boa formação intelectual, da seriedade no comportar-se, sempre no exercício das múltiplas tarefas impostas pela indeclinável vocação, que esse cidadão sergipano de 63 anos, reúne em forma de livro, parte significativa de sua produção jornalística.
Cleo é um poeta sensível, de alma romântica, reflexivo, amigo dos seus amigos, um cultor apaixonado da lealdade, um coração aberto para fazer o bem a todos que transitam no âmbito de sua atuação. Companheiro, estarei no dia 24 próximo (quinta feira) às 19 h na noite de autógrafo no Espaço Cultural Semear, para abraçá-lo e beijá-lo pela chegada da nova loba. Aquele abraço do irmão baiano e cidadão aracajuano, com a benção de Olorum..

SEGRASE PUBLICA LIVROS - Por Gilfrancisco Santos


Segrase publica livros pela Editora Diário Oficial

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Pós-Graduação da Faculdade São Luiz de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

A Editora Diário Oficial é um órgão suplementar da Empresa de Serviços Gráficos de Sergipe - SEGRASE, que foi previsto a sua criação no estatuto desta empresa, publicado no Diário Oficial de 29 de abril de 2008. Neste momento estamos oficializando a sua constituição, publicando as obras “De Portas Abertas” de Juraci Costa de Santana, “Litorâneos” de Ronaldson, respectivamente prêmios “Núbia Marques” (contos) e “Santo Souza” (poesia) da Secretaria de Estado da Cultura, e “Poço Redondo - A Saga de um Povo” de Alcino Alves Costa. O lançamento acontecerá no dia 17 (terça feira) de novembro às 17 h, na Sociedade Semear.

De Portas Abertas
As histórias sempre fascinaram o ser humano. Nas palavras ditas ou escritas de um bom narrador, os episódios adquirem vida. Os contos aqui reunidos falam de gente que como você têm sonhos, problemas e uma enorme vontade de ser feliz. Graças a sua inesgotável capacidade de imaginar vários ângulos de uma mesma situação, conseguindo aliar enredos envolventes à criação de uma linguagem saborosa e natural, é que os contos de Juraci na obra ‘De Portas Abertas’, revelam um trunfo raro, poucos sabem contar tão bem uma história como ele.
Juraci Costa de Santana (1959) nasceu em Itabaianinha/SE, onde fez seus primeiros estudos, antes de concluir o curso de Letras na Universidade Federal de Sergipe. Ao que parece, foi esta cidade que primeiro lhe estimulou o gosto pela ficção, foram as histórias do povo itabaianinhense, que acenderam-lhes a imaginação. O talento de Juraci Costa não tardou a fazer-se notado nesse jogo ficcional. Escritor premiado, eu diria que o ele está entre os cinco melhores contistas sergipanos. O autor já publicou: Urucunã (1997); Contos de Província (1999); História de Itabaianinha, a cidade dos anões (2003); Zé Belo e outras figuras (2005).
Através dos contos curtos, densos e ricos de sentidos, mostra o profundo conhecimento da matéria trabalhada, alguns desses contos obrigam o leitor a uma reflexão em torno da fenomenologia da consciência, uma desmontagem da linguagem e do universo semântico. De Portas Abertas, obra vencedora do Prêmio Núbia Marques (Contos), 2006, patrocinado pelo Governo do Estado de Sergipe, através da Secretaria de Estado da Cultura, traz contos monumentais, “de fato e de ficção”, feitos com a paixão necessária para compreender um povo sofrido, onde o leitor encontrará também as reflexões incisivas sobre a arte de escrever, o compromisso com a obra literária, a experiência absolutizante do poder e do amor, a luta de uma consciência pela definição dos dilemas humanos. São contos que exprimem a alma profunda da sua gente, com seu irremediável sofrimento que o atormenta, transmitindo com timbre intenso e inconfundível, a ponto de o tornar singularmente belo e capaz de retratar com veracidade a vida, sentimentos e paixões, dor e alegria de todo o seu povo.
Sabemos que o processo narrativo é uma forma especial de comunicação humana, e para existir, faz certas exigências. Não basta a presença elementar de um emissor, de uma mensagem e de um destinatário. De Portas Abertas, consegue ilustrar com clareza o pensamento narrativo do autor, fazendo o leitor entender aquilo que acontece na ficção e no real, essa obra é uma valiosa contribuição à historiografia literária sergipana, através dos bons contos, enfeixados nesta antologia, que hora publicamos.
Litorâneos
Ronaldson (1967) é um nome bastante conhecido no meio cultural sergipano, vencedor de vários prêmios, colaborador da imprensa local (Gazeta de Sergipe, Arte & Palavra, Aracaju Magazine, Cinform), desenhando, revisando ou dedicando-se a elaboração de inúmeros trabalhos gráficos, como ilustrações, capa de livros, cds e cartazes. Expôs em salões de humor e coletivas de artes plásticas como, Gravura de Inverno e Viés. Participou de algumas antologias poéticas sergipanas e nacionais. Vencedor do Prêmio Santo Souza de Poesia/2006, patrocinado pelo Governo do Estado de Sergipe, através da Secretaria do Estado da Cultura, o objetivo desse prêmio é revelar obras inéditas e estimular autores, finalmente ‘Litorâneos’ é publicado pela Editora do Diário Oficial.
Ao publicar seu primeiro livro ‘Questão de Íris’ (1997), prefaciado pelo tradutor e contista sergipano, Antônio Carlos Viana, este afirmava que o livro “resulta desse tratamento meticuloso dado às palavras, produzindo combinações sonoras e visuais a que poucos estão acostumados outro comentário positivo vem do crítico de arte Léo Mittaraquis em ‘A íris do jabuti’, “Versos em que cada palavra-chave impõe-se por si, gera conflitos, harmonias subsequentes e se explica.”
Litorâneos é um livro que enfatiza nossa terra, nosso litoral, tema constante também no livro anterior, de um autor sempre muito preocupado com a linguagem, apesar dessa coletânea trazer uma linguagem aparentemente mais despojada, o seu foco é nossa realidade marítima.
Dividido em três partes: Litorâneos, que intitula a obra e segundo o autor “queria fazer um livro praieiro, um livro caymminiano, que falasse de erotismo, praias, geografia, beleza do corpo, sol, nossas águas, enfim é a gente se voltando para nosso umbigo”; Funduras & Frugais – funduras são mergulhos nas profundezas do EU, da memória dos entes queridos e das frutas, ou seja tudo está relativo ao passado e suas reminiscências, esse é o enfoque; e finalmente a última parte Mimos Mínimos, que são os poemas curtos que remontam ao início de sua carreira de escritor, que publicava em paralelo aos poemas de muito fôlego. São poemas quase haicai (forma poética japonesa, composta de três versos).
Litorâneos é um livro que na utilização de uma linguagem cotidiana, a palavra é reduzida a mero objeto e ao empregá-la, transforma-a em campo de infinitas possibilidades expressivas. Isso possibilitou a esse poeta de profícua participação no panorama cultural sergipano, as condições fiéis para retratar estados emotivos de sua vida.
Poço Redondo - A saga de um povo
Povoação que pertencia a Porto da Folha foi elevada à categoria de cidade em 1956, Poço Redondo a 185 quilômetros de Aracaju, apesar da seca que assola o município, tem história, lugares que valem a pena ser conhecidos, como a Grota de Angico, onde Lampião morreu, ou o Morro da Letra, nas proximidades do Povoado Santa Rosa de Ermírio, cujas inscrições pré-históricas, em coloração avermelhada, ainda hoje não foram decifradas.
A história de Poço Redondo mudou totalmente na época do cangaço. Segundo Alcino Alves, dois acontecimentos do cangaço marcaram profundamente a vida dos habitantes do município: “Nenhum lugar, na vastidão dos campos sertanejos, viveu agonia tão grande e provocações tão gigantescas como o pequenino núcleo das brenhas do Riacho Jacaré. Por duas vezes, toda a população do povoado abandonou suas casas com medo da violência dos cangaceiros e da volante.”
Autor de uma série de livros, entre eles: Sertão, viola e amor; Lampião além da versão; Preces ao Velho Chico; Maria do Sertão; Sertão, vaqueiros e heróis; Canoas - o caminho pelas águas; João dos Santos – O caçador da Curituba; O sertão de Lampião. Alcino Alves Costa (1940), político festejado, por três vezes prefeito de sua terra (Poço Redondo), local que deu ao bando de Lampião, 26 cangaceiros. Histórias estas ouvidas e absorvidas por Alcino, que passou a contá-las e escrevê-las. Poço Redondo – a saga de um povo são narrativas das coisas e da vida do sertão sergipano, sobretudo administrativas, relacionadas ao município.
Ao publicar esta obra, a Editora do Diário Oficial coloca à disposição do público sergipano o importante trabalho do historiador autodidata Alcino Alves Costa, com isso busca contribuir para o resgate da memória de um dos mais expressivos municípios do Estado de Sergipe, principalmente pelo seu passado ligado à história do cangaço. Alcino é o mais conhecido explorador vivo da história de sua terra. Suas pesquisas e incursões na oralidade nos oferece um indispensável documento de referência tanto dos fatos da política local, quanto da trajetória de grandes políticos sergipanos. São relatos da vida de um povo que luta para se firmar numa região de clima inóspito e belezas singulares.






segunda-feira, 6 de julho de 2009

O POETA FERREIRA GULLAR

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com

"Escrevo pelo que me espanta e me comove" (Ferreira Gullar)

Enviado pelo Cinform (SE) ao Rio de Janeiro para receber o Prêmio Veríssimo de Melo, categoria "pesquisa e bibliografia", concedido pela União Brasileira de Escritores, pelo livro Musa Capenga – poemas de Edison Carneiro, o jornalista Gilfrancisco entrevistou com exclusividade o poeta Ferreira Gullar que completará em, 2010, oitenta anos de vida.
*****
Nascido na Rua dos Prazeres, 497 em São Luis, Maranhão, em 10 de setembro de 1930, José Ribamar Ferreira Gullar, poeta, crítico, dramaturgo, tradutor, contista, ensaísta e jornalista, muito cedo abandonou as brincadeiras de menino para se dedicar aos livros e a poesia. Na capital do país, aos 21 anos, logo publicaria A Luta Corporal, livro que abriu caminho para o movimento da poesia concretista do qual participou. Abandonando as vanguardas, assumiu uma nova atitude literária, engajada política e socialmente. Participando da resistência à ditadura militar, que se instaurou no Brasil em 1964, o poeta está sempre experimentando uma linguagem poética inovadora e comprometida na inesgotável busca do entendimento do homem. Perseguido, processado, preso e exilado, Gullar viveu em vários paises.
***

Cinform – Poeta vamos começar do começo! Seus primeiros passos na literatura, o que você lia no Maranhão e quais poetas lhe influenciaram?
Ferreira Gullar – Não tem nada especial. Meu interesse pela poesia nasceu dos livros de escola, de ler as antologias poéticas. Eu tinha um interesse mais acentuado que outros alunos do mesmo colégio. Nasceu de ler esses poetas e do jornalzinho que começou a publicar vários poemas dos alunos. Fui fazendo uma poesia rimada, metrificada, com certo jeito parnasiano, foi assim que nasceu aos pouco.

Cinform – Como muitos jovens poetas que desejam ver seus livros impressos, você custeou as despesas da edição de "Um pouco acima do chão", publicado em 1949. Como ocorreu esse desejo de ser poeta?
Ferreira Gullar – Esse livro eu publiquei em São Luís, são poemas que foram escritos entre os dezoito e dezenove anos, época em que eu já trabalhava como locutor na Rádio Timbira. Guardei algum dinheiro e minha mãe me ajudou bancando o resto. O livro foi publicado assim numa pequena gráfica que ficava no fundo de uma igreja, na Rua do Egito. Então, foi assim que saiu esse primeiro livro, como todos os livros, isso ocorria não só no Maranhão. Mesmo mais tarde, alguns poetas, até como Drummond estava custeando seus livros, segundo ou terceiro livro. Naquela época, editora para publicar poesia era uma coisa muito rara.

Cinform – E sua vinda para o Rio de Janeiro e a nova profissão de jornalista?
Ferreira Gullar – Eu vim para o Rio em 1951, tinha 21 anos. Vim pelo interesse em participar da vida cultural e artística, pois São Luís, naquela época, tinha muito pouca informação, com pouca atividade cultural e eu tinha interesse em participar da vida cultural do país. O Rio de Janeiro, naquela época, era metrópole, a capital do país, e era o centro cultural mais importante. Por isso eu vim, conseguir um emprego no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários, numa revista que eles faziam, os irmãos Condé (José Elísio ) sobretudo o João Conde, diretor do Jornal de Letras (mensário de literatura e artes), no qual eu tinha ganho um concurso. Eles, no ano anterior haviam constituído um concurso de poesia de âmbito nacional e eu ganhei o primeiro lugar nesse concurso e isso também me animou a vir morar no Rio. Entrei em contato com João Conde e ele era o diretor dessa revista do IAPC e me arranjou um ‘bico’ para ficar trabalhando na revista, esse foi meu primeiro emprego.

Cinform – Na verdade, sua estréia para o grande público brasileiro ocorreu em 1954 com "A Luta Corporal", ainda custeado por você, mas impresso na Gráfica da revista O Cruzeiro. Fale um pouco dessa edição.
Ferreira Gullar – Em 1954, eu fui convidado a trabalhar na revista O Cruzeiro no setor de revisão de texto que era dirigido pelo romancista baiano Herberto Salles. Com isso eu dividia meu tempo entre a revista O Cruzeiro e a revista do IAPC, que mantinha meu salariozinho pequeno, mas um salário um pouco melhor da revista O Cruzeiros e com isso me animei a publicar meu segundo livro, que foi impresso na gráfica da revista O Cruzeiro. A própria gráfica foi quem editou o livro. Eu desenhei e paginei o livro. A primeira edição (bastante diferente da 2ª ed. de José Álvaro Editor 1966), original, com páginas em branco, com espacejamento, uma série de coisas que eu tinha bolado porque fazia parte da minha visão, da minha experiência poética com a poesia espacializada, que depois daria origem à poesia concreta.

Cinform – Foi isso que chamou à atenção dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo) e Décio Pignatari?
Ferreira Gullar – Quando eles leram o livro, o que chamou mais atenção neles era que o livro terminava com a implosão da linguagem, desintegração da sintaxe e uma implosão das palavras, dos vocábulos, esse fato chamou a atenção porque era um livro inusitado. A poesia brasileira naquela altura era dominada pela chamada "Geração de 45", uma geração formalista, oposto do que eu tinha feito, era uma geração que voltava ao soneto, voltava às redondilhas, voltava ao verso metrificado e rimado, era o contrário do movimento modernista inicial, que abandonou todas as formas e foi para o verso livre. Então aquilo era um retorno a essas formas anteriores clássicas. O meu livro era o contrário disso, era uma implosão. Os irmãos Campos e o Décio Pignatari, que queriam fazer uma nova poesia, por não se contentarem com a poesia que estava sendo feita pela "Geração de 45", também não sabiam qual era o caminho. Então meu livro ao desintegrar a linguagem, pelo menos deu a eles, segundo a conversa que tive com Augusto de Campos comigo, essa desintegração da linguagem tornou inviável a continuação de uma poesia que não fosse com uma nova forma.

Cinform – E como foi resolvida a questão?
Ferreira Gullar – Então nós começamos a dialogar e nasceu a poesia concreta a partir do nosso diálogo. Eu não sou o criador da poesia concreta, mas com certas idéias que eu passei a eles nessas conversas, tornou possível a criação dessa poesia concreta, porque eles, inclusive, falavam em criar um novo verso. Eu falei um novo verso não, se eu acabei de desintegrar a linguagem, não pode ter novo verso, tem que ser nova sintaxe. Qual será essa sintaxe? Eles bolaram nova sintaxe que era a sintaxe espacial, não mais o discurso, mas a junção das palavras dos espaços, assim nasceu a Poesia Concreta.

Cinform – Poetas estrangeiros como Mallarmé, Ezra Pound, Cummings, Verlaine foram traduzidos a partir dos anos 50 pelos Campos, você já tinha conhecimentos de textos desses poetas no Maranhão?
Ferreira Gullar – No Maranhão, eu tinha conhecimento de alguma coisa mais esporádica de um ou outro livro que por acaso havia chegado as minhas mãos. Quando eu entrei em contato com os Campos, eles não conheciam Mallarmé. O interesse deles era muito mais pela poesia inglesa, era mais por Ezra Pound e James Joyce. O Mallarmé fui eu que introduzir para eles, inclusive "Um Coup de Dês" que eles não conheciam. Ai eles passaram a se interessar. Por exemplo, eles desprezavam Oswald de Andrade, a primeira conversa com Augusto, quando ele falou no chamado "elenco de autores", usava essa expressão, o nossa elenco de autores, ele mencionava uma série de autores Ezra Pound, Joyce, João Cabral , Drummond e ficava por ai. Eu falei assim: o Oswald é um poeta de certo modo mais inovador em certos aspectos mais do que esses que você citou. Aí o Augusto falou: o Oswald é um esculhambado. Bom, se ele é esculhambado, eu não sei, estou falando da poesia dele e não da pessoa Oswald. Eu também não acho que ele seja uma pessoa esculhambada, conheço ele inclusive.

Cinform – Com foi esse encontro?
Ferreira Gullar – Veio me visitar aqui no Rio, porque tinha lido "A Luta Corporal" no original. Foi o seguinte: Oliveira Basto foi a São Paulo e levou para ele. Oswald se entusiasmou pelo livro antes de ser publicado e quando veio ao Rio de Janeiro, Oliveira Bastos o levou a minha casa, onde eu morava com uma companheira ali na Glória, perto da Rua Francisco Bicalha. O encontro ocorreu no dia do meu aniversário, era domingo. Tocou a campainha, quando fui abrir a porta, era Oswald de Andrade. Tomei um susto, de manga de camisa. Eu tinha essa relação com Oswald de Andrade e gostava dele, por isso que o Bastos levou o livro para ele ler. Porque eu tinha falado com o Bastos sobre Oswald de Andrade, e também havia comprado um livro seu num sebo, um livro de poesia e o Mário Pedrosa tinha me dado para ler o "Pau Brasil" e eu achava a poesia dele muito inovadora e falei isso com o Bastos, que indo a São Paulo procurou Oswald e começou uma relação.

Cinform – E a conversa com Augusto o convenceu?
Ferreira Gullar – Quando o Augusto conversou comigo, apesar de morar em São Paulo, ele não tinha conhecimento da poesia de Oswald de Andrade, só tinha conhecimento do Oswald de Andrade esculhambado, piadista. Então eu falei: você está equivocado, o Oswald (até usei essa expressão) possui uma linguagem dele, ademais ele é jovem, como se fosse uma folha verde, uma coisa verde, uma plantinha verde, uma coisa diferente, acho que se a gente está querendo fazer uma outra poesia, precisa ler o Oswald. A bem de a verdade, eles leram e se entusiasmaram, valorizaram ao ponto de redescobri-lo e revalorizar o Oswald, que estava esquecido, tanto que eu comprei o livro dele no sebo, foi a primeira coisa que li de Oswald "Serafim Ponte Grande" (1933). Eu comprei no sebo da Livraria São José, estava um amontoado no chão, uma série de livros sendo vendidos ao preço de três vinténs. Dessa conversa surgiu isso e o Oswald acabou sendo valorizado pelos irmãos Campos.

Cinform – E sua militância participativa no CPC?
Ferreira Gullar – O Centro Popular de Cultura é uma invenção de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho,) que pertencia antes ao Teatro de arena, iniciador do teatro político, mais comprometido com a evolução, com as mudanças da sociedade brasileira, era um teatro novo em contraposição ao Teatro Brasileiro de Comédia – TBC que era o teatro de Adolfo Celi, Ziembinski, Paulo Autran, enquanto o Teatro de Arena era um teatro de jovens de posição de esquerda e que pensava fazer um espetáculo visando um público diferente do público do TBC, um público mais pobre, mais proletário. Só que eles depois perceberam que gente pobre não vai ao teatro, não tem dinheiro nem hábito e isso criou uma divisão e o Vianinha não se conformava com a idéia de ficar fazendo espetáculos sobre operário para pequena burguesia assistir. Então ele se afastou do Teatro de Arena, veio pro Rio e criou um grupo para fazer teatro de graça, achando que se tivesse bilheteria o povão não iria. Daí surgiu o CPC. Como queria fazer tudo de graça, tinha de ter o apoio de alguma instituição para a própria sobrevivência do grupo. Veio a idéia de se juntar a UNE – União Nacional dos Estudantes. A UNE era dirigida na época pela AP – Ação Popular da juventude católica e o Partido Comunista era aliado na direção da UNE. O que a UNE deu ao CPC foi o local da sede que ficava na Praia do Flamengo, uma saleta onde a gente se reunia. Tinha um cara da direção do Partido que funcionava como assistente. Ia para discutir, trazer informações, orientação política, dizer o que estava acontecendo na área política, qual a avaliação que o partido fazia da situação política, mas o CPC era autônomo não era orientado pelo Partido, nem recebia dinheiro de ninguém. A própria UNE no seu orçamento incluiu uma ajuda que o governo dava para a instituição, repassando uma pequena parte para subvencionar as atividades do CPC, como montagem de espetáculos que eram na sua maioria montados nos Congressos da UNE, onde os estudantes que realizavam às vezes no Rio, Belo Horizonte e Bahia. O CPC realizou algumas publicações de cordéis, publiquei na época quatro. Eventualmente se publicava alguns livros de interesses do movimento estudantil, porque a UNE tinha uma pequena gráfica.

Cinform – Seu ensaio "Vanguarda e Subdesenvolvimento" (1969) provocou uma grande polêmica pela sua visão com conceitos inovadores na época. Você pensa em escrever um novo texto teórico sobre o assunto ou ele atualmente não existe no Brasil?
Ferreira Gullar – Veja bem, aquele livro é um livro que diz srespeito a um momento da cultura e arte brasileira, um momento específico que eu tentei analisar e me situar diante dele. É uma visão marxista da questão cultural, na última edição do livro (2002) eu faço alguns reparos às teses que defendo no livro, hoje eu não concordo com todas as teses que estão expostas no livro, mas no fundamental eu acho que o livro está certo. Quando ele chama à atenção do fato de uma vanguarda internacional à importação e à crítica de movimentos internacionais, estéticos de vanguarda, na verdade eles não ajudam ao desenvolvimento de uma arte autônoma. Um exemplo mais fácil: quando o rock tomou conta do mundo, a música popular de vários paises acabou. No Brasil, não acabou, embora tenha sofrido muito por pressão dessa música, porque houve uma geração que depois passou pro rock, só não acabou porque a tradição brasileira era muito forte, mas em muitos países acabou praticamente.

Cinform – Você é contra a essa invasão cultural ?
Ferreira Gullar – Não é que eu seja contra a música internacional, contra a arte que é feita em outros paises, acho que a arte tem um caráter universal e não se pode fechar os olhos e ignorar ou negar - o que não pode é fazer com que a influência externa mate, cale a voz das coisas que nascem aqui, da criatividade autônoma, porque quanto mais autonomia tem os artistas dos diferentes países, mais rica será a cultura e a arte do mundo inteiro. Se existe uma arte argentina própria da Argentina, uma arte brasileira própria do Brasil, não é que seja nacionalista, mas que nasça até com hostilidade com a contemporaneidade, mas que tenha raízes aqui, que não seja apenas imitação de uma coisa que venha de fora e que isso realmente estava acontecendo. Mas a razão principal é essa arte negativa "niilista" para destruir a própria arte, como a Bienal que está sendo aberta, chegou sem obra. É uma Bienal sem obra e isso já mostra tudo. Ontem eu assistia a uma entrevista do curador da Bienal, onde ele falou: pois é, antigamente as paredes estavam cheias de obras, hoje a gente pergunta o que é melhor é ter obras ou não ter obras, eu nunca vi isso. Se você vai fazer uma exposição de arte, coloca-se uma questão se deve ter obra de arte eu não entendo. Então não é mais arte, no fundo o que ele está dizendo é que isso que eles expõem não é mais arte, não interessa ele expor, é isso que ele está dizendo. Essa bienal tem os dias contados, isso é uma coisa velha, ultrapassada, não tem mais sentido, é a falsa vanguarda, a própria Bienal é uma instituição de vanguarda, tanto que ela não pode negar, registrar nada, quanto mais louca for a proposta que o artista faça para ela, não pode rejeitar porque ela tem medo de ficar na retaguarda. Por isso aceita tudo, porque ela é de vanguarda, também a instituição é de vanguarda, ela nasceu para ser de vanguarda, são as coisas mais absurdas. Agora nessa Bienal um cara fez um tobogã, ele vai até o último andar do prédio e desce de tobogã, é a obra dele. Quer dizer, tobogã no parque de diversão é "tobogã", mas lá na Bienal é "arte". É a instituição que faz um tobogã virar uma obra de arte, isso é uma palhaçada. Então era isso que eu combatia. Alguns aspectos ortodoxos da visão marxista que estão presentes no livro, também estão equivocadas, eu acho que não é isso, eu ainda não tinha uma visão crítica de determinados problemas que depois pude observá-los. Hoje eu olho criticamente as coisas que escrevi anteriormente.

Cinform – "Poema Sujo" (1976), livro publicado em vários países, nasceu no exílio. O que levou o poeta Ferreira Gullar a essa ruptura lingüística, política e memorialista?
Ferreira Gullar – Poema Sujo é um dos poucos livros, talvez o único livro de poesia que tenha sido best-seller, porque ele estava na lista da revista Veja, entre os livros mais vendidos permanecendo na lista por várias semanas, foi uma coisa excepcional. Eu escrevi o livro em condições muito dramáticas, difícil porque eu estava exilado na Argentina. Já depois de vários anos de exílio e bastante apreensivo com o que estava acontecendo na Argentina, eu havia saído do Chile onde tinha ocorrido a queda do presidente Salvador Allender e tinha ido para Argentina onde começava um movimento para também derrubar Isabelita, do governo eleito. Então eu via compreensão, eu tinha notícias também dessa ligação da polícia brasileira, da polícia secreta militar, juntas com os argentinos e chilenos uma rede para prender os chamados subversivos como nós e por isso eu vivia numa situação difícil, não tinha para onde ir, meu passaporte tinha sido cancelado pelo Itamaraty, então eu escrevi o poema assim, como eu costumo dizer: como se eu escrevesse a última coisa da vida, enquanto é tempo eu vou escrever, que me resta escrever. O poema foi assim.

Cinform – Hoje o "Poema Sujo" encontra-se na13 edição. Em 2002, comemorou-se 30 anos da publicação da obra e saiu uma edição em sua homenagem, trazendo como brinde um CD com o poema lido na voz do poeta, patrocinado pelo Instituto Moreira Salles. Como ocorreu essa parceria com a José Olympio?
Ferreira Gullar – O Instituto Moreira Salles fez um pequeno documentário comigo que é a leitura do poema, registro filmado. Eu entro no auditório, eles me acompanham, em seguida vou até o microfone e começa então a leitura do poema. Quando, José Olympio teve a idéia de fazer a edição junto com o CD, eu falei: em vez de gravar outra vez, o poema existe na trilha sonora do filme. Ai eles falaram com o Instituto que cedeu a gravação do poema somente para esta edição. A gravação do poema é a mesma que está no filme.

Cinform – Seu livro de contos "Cidades Inventadas" (1996) é uma de suas obras menos conhecidas. O que você atribui a esse não entendimento da crítica e dos professores universitários a não adotá-lo nos cursos de letras.
Ferreira Gullar – As pessoas que leram o livro gostam muito, mas eu acho, talvez pelo fato de ser poeta. Primeiro não existe crítica literária no país, o pouco que existe é uma coisa acadêmica e pouco sensível ao que é diferente. Esse pessoal estabelece determinados critérios e fica atuando dentro daquilo, são incapazes de perceber. Por exemplo "Cidades Inventadas", modesta parte é um livro bastante inovador, o primeiro conto desse livro Odon foi escrito em 1955 e ele tem uma visão da América Latina e do Brasil, enfim do que é a vida nas cidades urbanas, o que é bastante inovadora e que precede o Macondo do romancista Gabriel Garcia Márquez, não é o Macondo, precedo o Macondo que é anterior. Eu não tive maiores pretensões, escrevi aquilo como faço as minhas coisas, pelo prazer de escrever, pela necessidade de escrever, não faço com propósito de fazer vanguarda, inovar, eu faço pela necessidade. Então "Cidades Inventadas" é um estranho livro de contos porque não tem personagens, as personagens são cidades que eu inventei, por isso ele é estranho e também é uma falsa história. Foi escrito com se fosse um historiador que estivesse escrevendo aquelas histórias, tanto que têm notas de pé-de-página, referências bibliográficas, mas é tudo mentira, tudo falso. Os livros citados não são livros, é tudo falso, tudo inventado. Agora as pessoas que leram gostaram, mas os críticos e professores não se deram o trabalho de ler.

Cinform – Como é Ferreira Gullar, que é poeta, ser apresentador de um programa de entrevistas (Gerações), num canal de TV fechada?
Ferreira Gullar – Eu sempre tive diferentes atividades, porque não dá para viver de poesia. Fui locutor de rádio no Maranhão, depois jornalista profissional no Rio de Janeiro e essa é minha profissão e a vida inteira eu trabalhei em jornal até me aposentar. Fui durante muito tempo copy-desk, chefe de copy-desk de jornal, ajudei a transformação do Jornal do Brasil, a renovação do Jornal do Brasil, continuei trabalhando em outros jornais e na televisão eu fui chamado pelo Dias Gomes quando voltei do exílio para fazer teledramaturgia junto com ele. Portanto a minha ligação com a televisão também é anterior a esse programa, não como apresentador, mas trabalhando na televisão. Um amigo meu que é pernambucano, Roberto Viana, empresário da área de comunicação e fã da minha poesia, assinou um contrato com a STV (Televisão Sesc/Senac) para uma série de programas chamados "Gerações".
E a idéia dele era que eu, de uma geração mais velha, dialogasse com pessoas de diferentes gerações, essa era a idéia inicial do programa, mas eu fiz durante três anos. Gravava quatro programas por semana e era apresentado um por mês, mas faz muitos anos que isso terminou que deixei de gravar. Sei que o programa continua sendo reprisado por várias emissoras. Você é capturado por ele e passa a ser usado, não se passa um dia que não apareça alguém para me dizer que assistiu o programa, antes era exibido na TV Educativa, depois passou para TV Senado, ouvi alguém dizer que estava na Rede Brasil, acho que há um contrato entre eles mas não nos informam nada. Tenho noticias porque as pessoas gostam do programa, porque eu sou o que menos fala no programa. Às vezes digo brincando ser o contrário do Jô! Quando entrevisto as pessoas, eu pergunto e a pessoa fala, só volto a perguntar se o que ele respondeu dá cabimento, eu ali sou o público, que quer saber, quer esclarecer as coisas que estão sendo conversadas, ali eu não fico pregando, a não ser um momento ou outro quando tem uma idéias que eu acho que é interessante fazer uma intervenção, ampliar a discussão é que eu faço uma interferência um pouco mais demorada. Mas, na maior parte do tempo, sou o público ouvindo e questionando as pessoas que estão sendo entrevistadas.

Cinform – Você não é afeito a prefaciar livros de poetas emergentes, mas já escreveu dezenas de críticas literárias e textos sobre artes que foram publicados em diversos periódicos. Já pensou em reunir esse material em livro. ?
Ferreira Gullar – Evito fazer apresentações porque isso me cria muitos problemas, eu não posso ficar o tempo todo lendo livros dos outros e fazendo prefácios se não eu não trabalho. O material de artes plásticas uma parte já está reunida. Atualmente colaboro na revista Continente, de Pernambuco, onde escrevo sobre artes plásticas. Os artigos que saíram em Continente ainda não estão reunidos em livros. Mas os artigos que foram publicados em outros lugares há mais tempo já foram reunidos em livro. Recentemente fui informado que a José Olympio pretende fazer uma edição dos textos sobre artes que tenho publicados na revista Continente. A proposta está sendo estudada, eu ainda estou fazendo uma seleção para ver. As minhas crônicas colaboradas na Folha de São Paulo foram publicadas no livro "Resmungos", pela Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, um livro de formato grande, encadernado com ilustrações do ilustrador da época que era Antonio Henrique Amaral, esse inclusive ganhou o Prêmio Jabuti. Em 2001, a Editora Ática publicou "O Menino e o arco-íris", na coleção "Para Gostar de Ler", uma seleção de crônicas antigas para jovens. Em 2006, foi a vez da Editora Global que publicou uma antologia das minhas crônicas, um livro com quase trezentas páginas.

Cinform – Atualmente a Literatura de Cordel tem obtido grande divulgação na mídia. Está presente nas escolas de 1º e 2º graus e nos concursos de vestibulares. Você não acha oportuno a re-edição dos seus cordéis (1962-1967) separadamente do volume de "Toda Poesia"? Por que não editar um único volume dos cordéis: João-Boa-Morte, cabra marcado para morrer; Quem matou Aparecida; Peleja de Zé Molesta com Tio San e História de um valente?
Ferreira Gullar – É, Gilfrancisco, eu não tinha pensado nessa possibilidade. Como você sabe, todos eles foram publicados em "Toda Poesia". A Editora José Olympio é quem publica minha obra e eu sugeri que se fizesse além do volume de "Toda Poesia", fizesse também separadamente as edições dos diferentes livros, para viabilizar a compra, até porque pessoas que já tenham dois livros teriam que comprar tudo de novo, não é justo, por isso sugerir a publicação separadamente de cada livro. Você tem Dentro da Noite Veloz (separado), Barulhos (separado), Poema Sujo (separado), Na Vertigem do Dia (separado), Crime na flora (separado), ou seja, todos esses livros estão separados. Os cordéis realmente nunca foram editados separadamente, esse sua sugestão é bem vinda, eu vou falar com a Maria Amélia, diretora de edições da José Olympio, talvez fosse uma coisa interessante.

Cinform – Você foi parceiro de Caetano Veloso com o poema "Onde Andarás", que faz parte do seu primeiro LP individual prensado em 1968. Em que circunstância ocorreu a parceria e por que não houve continuidade como a estabelecida com Raimundo Fagner com quem tem vários poemas musicados: Traduzir-se; Me Leve – cantiga pra não morrer; Rainha da vida. Contigo e outras?
Ferreira Gullar – Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi a Maria Bethânia que me pediu, se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor-de-cotovelo que ela queria gravar no seu disco de estréia. Então fiz e entreguei a ela duas letras, uma é "Onde Andarás" e a outra é um poema que também é do mesmo livro, que eu adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou uma delas, o outro poema eu acho que inspirou "Alegria Alegria", porque fala "atravessa a rua, entra no cinema" é um poema urbano, que fala exatamente da cidade e o enfoque é o mesmo e o fato dele não ter posto música na minha letra e ter escrito "Alegria Alegria" dá a impressão de que ele achou melhor criar uma letra sobre aquele assunto. Existe na música "Alegria Alegria" uma expressão que é de um poema meu "o sol se reparte em crimes" isso é de um poema que diz assim: "A tarde se reparte em yorgut, coalhada, copos de leites" esse uso do verbo repartir nesse sentido é do poema "Na Leiteiria". "A tarde se reparte em copos de leite", "o sol se reparte em crimes/espaçonaves guerrilhas". Tudo bem, a função da poesia é essa, o poeta inventa as expressões e o artista popular, o compositor não tem essa função - é muito mais a de comunicar de maneira ampla com o público, não é de mudar a linguagem, de reinventar a linguagem isso é mais dos poetas. O caso do Fagner é diferente, ele me procurou, ele buscou meus poemas e nos tornamos amigos, eu gosto muito dele, tenho uma grande amizade por esse cearense. De vez em quando ele me liga ou me escreve, até me pediu outro dia para que eu colocasse letras numas músicas que ele enviou num cd, por problemas técnicos a mídia não funcionou ficando eu impossibilitado de ouvir as músicas. Mas houve um impedimento, primeiro que eu não tenho muita capacidade de colocar letras em música, o único caso que conseguir isso de maneira bastante satisfatória foi o "Trenzinho do Caipira" de Villa Lobos. Na verdade eu tenho dificuldade, primeiro porque eu fico sem saber que assunto é, porque não escrevo com facilidade. Eu, em geral, sou levado a escrever por alguma coisa que me espanta, que me surpreende, que me comove. Pegar uma música e saber que sentido tem aquilo... eu não sei que sentido tem aquela música. A música tudo bem, pela melodia a gente se guia, mas o que vou escrever? Como é que eu vou transformar aquilo em palavras, eu não consigo é muito difícil. Isso é coisa pro Caetano e Chico, eles entendem disso. O Capinan tem uma experiência de letrista que não tenho é um outro departamento.

Cinform – Poeta, em 2010, você completa oitenta anos. Já foi procurado por alguma instituição de ensino superior ou órgão governamental para organizar e promover um evento em sua homenagem?
Ferreira Gullar – Acho que ninguém está pensando nisso nem mesmo eu, e nem fui procurado por ninguém. Sinceramente não estou preocupado com isso. Quando eu fiz setenta anos, um amigo meu que trabalha nessa área de promoções junto com o Museu de Arte Moderna do Rio, fez uma homenagem, em que participaram Adriana Calcanhoto, a nossa grande atriz Fernanda Montenegro que recitou alguns poemas meus. Foi uma homenagem bonita e havia ainda uma exposição de vinte seis artistas, que me presentearam a coleção "Ferreira Gullar", alguns como João Câmara, Siron Franco, Amilca de Castro. Eu doei essa coleção ao Museu de Arte Moderna do Rio. Ao invés de ser presenteado doei as vinte seis obras ao MAM e até hoje o Museu não consigna em uma relação de acervo as obras. É uma coisa inteiramente estranha, eu doei as obras e o MAM nunca publicou a relação dessas obras da coleção "Ferreira Gullar", tenho até medo das obras desaparecerem. Como o Museu não consigna a presença das obras, eu preciso saber o que está acontecendo, porque já ouve caso de obras desaparecerem no Museu, uma coleção de gravuras de Roberto De Lamonica doada a esta instituição quando encontrava-se doente em Nova York, entregue pela artista e gravadora Tereza Miranda, sumiu no ano seguinte. Por esse motivo é que eu temo com o que possa acontecer a coleção "Ferreira Gullar".

Um Espelho de muitas imagens em Inglês de Sousa

Avô do modernista Oswald de Andrade, Inglês de Sousa foi presidente da província de Sergipe (1881-1882), onde implantou reformas na instrução pública.

GILFRANCISCO; jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

Em 1989 estive pela primeira vez em Belém – Pará participando do X ENEL – Encontro Nacional dos Estudantes de Letras (9 a 13 de outubro, coincidindo com as festividades religiosas do Círio de Nazaré realizada no segundo domingo), onde apresentaria uma comunicação sobre Mário de Andrade. a organização geral do evento distribuiu material aos participantes e junto veio um exemplar do livro “O Cacaulista (cenas da vida do Amazonas)”, coleção Amazônica, publicado pela Universidade Federal do Pará (1973) e ilustrações de Rudol Riehl. Esse foi meu primeiro contato com Inglês de sousa, somente alguns anos depois leria sua obra máxima, O Missionário.
Origens
Herculano Marcos Inglês de Sousa, nasceu em Óbidos em 28 de dezembro de 1853, pequena cidade da província do Pará, situada na época a 200 léguas da capital na margem esquerda do Amazonas, próxima da foz do Trombetas. Filho do Desembargador Marcos Antonio Rodrigues de Sousa e de D. Henriqueta Amália de Góis Brito Inglês. Origina-se de uma das mais antigas famílias paraenses.
Terminados os primeiros estudos em sua terra natal, segue para o Maranhão onde faz o curso ginasial e o preparatório no Recife e matricula-se na Faculdade de Direito do Recife em 1870 e passa férias com a família mo Pará – a última vez em que esteve na região amazônica, conclui o curso em São Paulo em 1876, ano em que publica “Cenas da vida do amazonas: História de um pescador”.
Em 1878, casa-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha bisneta de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Dessa união nasceu Inês Inglês de Sousa (paraense falecida em 1912), que mais tarde se casaria com o mineiro José Nogueira de Andrade (falecido em fevereiro de 1919) e juntos tiveram um único filho, José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954), a figura mais expressiva do Modernismo Brasileiro. Filho de família abastada, Oswald viveria, sobretudo, de rendimentos imobiliários, conhecendo, porém reveses de fortuna.
Inglês de Sousa dedica-se à política e ingressa no Partido Liberal e ao jornalismo, fundando O Diário de Santos e a Tribuna Liberal e com o Dr. Antonio Carlos a Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras. Foi secretário da Relação de São Paulo; deputado à Assembléia Provincial e elabora o projeto de criação da Escola Normal. Beneficiado pelas circunstâncias então favoráveis aos liberais, Inglês de Sousa galgou posições com rapidez.
Em 1822 é eleito presidente do Espírito Santo, volta a Santos e candidata-se a Assembléia Geral. Um ano depois, a conselho médico abandonava a política e advoga em Santos. Em 1890 muda-se para São Paulo e funda o Banco de Melhoramentos de São Paulo e dois anos depois, transfere-se para a capital federal e como especialista em direito comercia, iniciou essa disciplina na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, sendo mais tarde nomeado diretor.
Em 1896 participa da fundação da Academia Brasileira de Letras, de cujo projeto de Estatutos foi redator. Em 1908 foi eleito Presidente do Instituto da Ordem dos Advogados e do 2º Congresso Jurídico Brasileiro. Oito anos depois, se representa o Brasil no Congresso Financeiro Pan Americano em Buenos Aires no qual foi escolhido Presidente da comissão para verificação da legislação sobre letras de câmbio. Quando de Sousa morreu a 6 de setembro de 1918, aos 62 anos no Rio de Janeiro, estava as vésperas do fim da guerra, o armistício foi assinado em novembro e o tratado de Versalhes em 1919. O grande romancista foi sepultado no cemitério de São João Batista com um “dos maiores acompanhamentos de que há memória”, segundo relatou O País no dia seguinte.
Presidente em Sergipe
Após exercer o mandato de deputado na Assembléia Provincial de São Paulo pelo Partido Liberal e criar o projeto de reabertura da escola normal e nomeado pelo conselheiro Saraiva para atuar como Presidente da província de Sergipe. Sergipe enfrentava um momento político delicado, o Partido Liberal se achava dividido na pequena província, era preciso nomear alguém de fora para coordenar a realização do processo eleitoral para deputado provincial e deputado geral do Império.
Depois de realizar uma gestão conturbada de mais ou menos dez meses, na qual realizou uma ampla reforma no ensino primário, secundário e normal, foi transferido para a Província do Espírito Santo, lugar em que também reformou a instrução pública. Como presidente da província de 18 de maio de 1881 a 22 de fevereiro de 1882, publicou em Aracaju a “Reforma e Regulamento da Instrução Pública (1881). A instrução pública reformada foi compreendida por Inglês de Sousa como a única esperança possível para a modernização que ele empreendeu, foi produzida de acordo com suas convicções liberais e positivistas, sobre as virtudes da educação como fator de progresso, que não prescinde da necessária laicização do ensino.
O Regulamento de 11 de setembro da reforma da Instrução Pública do Presidente Inglês de Sousa, nome de projeção nos meios literários do país, com romances marcados pela Escola Naturalista, suprime o ensino religioso das escolas públicas, introduzindo a educação laicizada num desafio à tradição, abrindo espaço à co-educação ao determinar que as escolas públicas seriam freqüentadas por estudantes de ambos os sexos.
O Atheneu Sergipense passou a ser Liceu Secundário de Sergipe com o curso seriado de seis anos. O art. 1º do Regulamento de 5 de junho de 1881 determinando que haverá nesta capital uma Escola Normal destinada a habilitar indivíduos de ambos os sexos na teoria e na prática do ensino primário, a qual seria inaugurada, solenemente em 16 de agosto do mesmo ano. A Escola Normal mista criada por Inglês de Sousa “sofreu críticas violentas e apaixonadas, escandalizando a sociedade patriarcal ao desafiar a tradição da separação dos sexos, considerada pela crítica, liderada pela Pe. Olimpio [uma casa de hermafroditas]”. 1
O Pe. Olimpio Campos (1853-1906) publicou vários textos dirigidos ao presidente da província, condenando a reforma, oferecendo-se para ensinar, sem custos, a cátedra religião “provocando uma das mais ruidosas polêmicas, da qual participou, sob o pseudônimo de Homo, o encarregado da alfândega, Sousa Botafogo. Por todo o confronto verbal, Olímpio Campos jamais soube quem era seu verdadeiro contendor, atribuindo os artigos dos jornais ao próprio presidente Inglês de Sousa.” 2
Talvez esse embate tenha influenciado o Pe. Olímpio Campos a entrar na política, candidatando-se pelo 2º Distrito, o de Estância que abarcava as paróquias de Itabaianinha e Cristinápoles e quando eleito deputado provincial (1882) apresentou projeto de lei restituindo a cátedra de ensino religioso à Escola Normal. Foi ainda deputado geral no Império (1885-1886, 1886-1889). Com a saída do Presidente Inglês de Sousa, a Escola Normal passou a existir duas, uma masculina e outra feminina.
Escola Naturalista
Entre os anos de 1876 e 1877, quando estudante de direito, Inglês de Sousa, dá a público nada menos do que três romances, O cacaulista, História de um pescador e O coronel sangrado. Apesar de ter publicado em primeira mão, romances classificados como naturalistas não garante a Inglês de Sousa a posição de fundador da “escola naturalista”, pois estamos acostumados a ver nas cronologias e manuais da historiografia literária o nome de Aluysio Azevedo como marco inicial do Naturalismo no Brasil.
Alceu amoroso Lima afirma que “Inglês de Sousa representa, na historia do romance brasileiro, a passagem do romantismo ao naturalismo. Não a um naturalismo marcado pela influência de Zola como foi o caso de Aluysio Azevedo, cujo Mulato de 1881, representa o início oficial da nova escola, mas um naturalismo, por assim dizer, intrínseco, marcado pela influência ideológica da Escola do Recife e, principalmente, pela influência do ambiente amazônico, com que o Pará marcou sua infância e sua adolescência.” 3
A Escola Naturalista que aplicando à arte os métodos da ciência positiva visava a reproduzir a sua realidade com uma objetividade perfeita e em todos os aspectos, mesmo os vulgares. Essa escola constituiu-se em 1860 e 1880 soa a dupla influência do realismo de Flaubert e do positivismo de Taine. No Brasil, o principal representante da estética naturalista foi Aluysio Azevedo, que, em 1881, com a publicação de O Mulato tornou-se o introdutor do movimento entre nós. Sua obra máxima, O Cortiço (1890), constitui também a melhor contribuição do naturalismo brasileira. Menores, mas mais representativos do ideário naturalista – e dos excessos que o esgotaram – foram Júlio Ribeiro; A Carne (1880); Adolfo Caminha, a Normalista (1893), Bom Crioulo (1895), 4 e o próprio Inglês de Sousa, com O Missionário (1888). Se de um modo geral, o Naturalismo na literatura brasileira não passou de momento esporádico no âmbito da afirmação das idéias positivistas e cientificistas em voga no fim do século XIX, coube-lhe o papel de iniciar a tradição regionalista, que se prolongou até a instauração do romance moderno.
O positivismo de augusto Comte afirmava que as únicas verdades que o homem pode conhecer são as decorrentes da observação e da experiência; o determinismo social de Hippolyte Taine dizia que o homem é produto do seu meio, sem que o livre-arbítrio ou a vontade própria tenham muitas influências. A combinação das idéias desses filósofos franceses foi o poderoso motor de uma nova escola literária, o Naturalismo.
Em sua vertente regional o Naturalismo brasileiro encontrou nos autores cearenses preocupados com o declínio econômico do Nordeste (secas e migração), representantes importantes como Rodolfo Teófilo, A fome (1890) 5, Manuel de Oliveira Paiva, D. Guidinha do Poço (1891) e Domingos Olimpio, Luzia-homem (1901).
O Cacaulista
Ao propor-se escrever uma série de narrativas sob o título geral de cenas da vida do Amazonas, Inglês de Sousa enfrenta as dificuldades inerentes à transferência do eixo narrativo para as regiões do interior. O cacaulista, primeiro da série, passa-se, como informam as linhas iniciais, “algumas milhas acima da cidade de Óbidos, à margem do Piranamiri.” A história gravita em torno da rivalidade, por questões de terra, entre o adolescente Miguel e o tenente Ribeiro, complicada pelo fato de o jovem está apaixonado pela filha do desafeto. Mas Rita acaba por casar-se com Moreira, moço da cidade, inculcada pelo pai. Os amores difíceis de Miguel e Rita, filha do tenente Ribeiro, mulato enriquecido pela exploração dos vizinhos, se imbricam com os conflitos socioeconômicos de uma comunidade em formação, na grandiosidade esmagadora da Hiléia.
Escrito em 1875 na cidade do Recife, quando o autor cursava o quarto ano da Faculdade de direito, foi publicado um ano depois e teve uma 2ª edição em 1973, pela Universidade Federal do Pará, coleção Amazônica, série Inglês de Sousa, dirigida pelo professor Arthur Cezar Ferreira Reis. Nesta sua obra de estudante, Inglês de Sousa historia a decadência da família rural, no Baixo-amazonas do fim do século XIX. Descrevendo de maneira impressionante um aglomerado humano, fixando com exatidão o meio-ambiente e focaliza, com nitidez, o ciclo regionalista no qual decorre o enredo do seu romance.
Minucioso nos detalhes, na paixão pela terra, no registro dos diálogos, Inglês de Sousa conseguiu elaborar um trabalho que é verdadeiro documento sociológico. Neste volume de estréia, Inglês de Sousa revela-se uma autêntica vocação para os segredos ficcionistas. Considerando-se a época de sua publicação, ele se tornou, para o tempo, um romance audacioso, construído com invulgaridade e ousadia.
O Coronel sangrado
Devemos ao estudo de Lúcia Miguel Pereira, ao analisar a literatura brasileira no período de 1870 a 1920, a constatação que iniciou cronologicamente (1877), o naturalismo no Brasil, com o romance do paraense “O Coronel sangrado” de Inglês de Sousa, naturalista não na técnica, mas no espírito. Durante muitos anos foi difícil estudar a obra de Inglês de Sousa, em virtude dos seus romances não serem reeditados. O romancista e contista João Pacheco ao escrever o volume III (Realismo, 1870-1890) para integrar a coleção “A Literatura Brasileira, publicado pela Cultrix, em 1971, 4º Ed. Ao examinar a obra de Inglês de Sousa, afirma ser inacessível os romances, O Cacaulista (1876) e O Coronel sangrado (1877). O primeiro teve uma segunda edição em 1973, o segundo em 1968, ambos publicados pela Universidade Federal do Pará, revelando para muitos a concisão, a velocidade e a atualidade da narrativa do romancista obidense. Ainda em 2003 a universidade voltou a reeditar a obra com o apoio do Banco do Amazônia e o livro ganhou mais 76 páginas, uma apresentação de Amarílis Tupiassu, abas assinadas por José Arthur Bogéa e fotografias.
Em o Coronel sangrado, Miguel está em Óbidos e destaca-se na narrativa dos acontecimentos dessa cidade provinciana, a disputa política entre conservadores e liberais O tenente-coronel Severino de Paiva Prestes era chamado de o coronel sangrado, por seu hábito de receitar sangrias para solucionar problemas de doenças, com certo êxito. Pretendia o tenente-coronel Severino eleger Miguel vereador por quem se afeiçoara e decidira fazer dele seu protegido. No entanto, os planos do coronel Sangrado malogram, entre outros motivos pelas intrigas paroquiais que se desenvolvem. Morre o Coronel sangrado e Miguel, que nunca esquecera Rita, acaba tendo a realização de sua paixão, quando Moreira também morre num acidente, casando com ela, não sem antes passar cinco anos em Belém do Pará, de onde volta com certo ar de moço da cidade e resolvendo o problema do final aberto do primeiro volume.
Inglês de Sousa publicou cinco livros, todos de temática realista-naturalista, entre 1876 e 1893. Os três primeiros, O Cacaulista, História de um pescador e O Coronel sangrado, publicados num período ainda dominado pelo Romantismo. O maranhense Josué Montello, no prefácio da reedição de 1968 diz ser O Coronel sangrado “livro que revela, nessa hora matinal, os pendores de romancista e o que confere a seu autor uma preeminência ao monólogo, na história do romance naturalista em nosso país.”
O Missionário
No ano em que foi escrito o romance “O Missionário” (1888), publicaram-se duas obras que, por motivos bem diversos, embora igualmente considerados, se destinavam a marcar época na história do nosso romance: A Carne, de Júlio Ribeiro e O Atheneu, de Raul Pompéia. 6 Sergio Buarque de Holanda, comenta em artigo o porque da aclamação de ambas as obras: “O rumoroso sucesso alcançado por aqueles romances destoa singularmente da atitude discreta ou desatenta com que foi acolhido este outro, publicado no mesmo ano e pertencente à mesma orientação: O Missionário, de Inglês de Sousa. A diferença de tratamento é tanto mais injusta quanto o descaso pela obra do escritor paraense não provém de seus defeitos reais, ou provém menos desses defeitos do que da liberdade que o autor pode manter freqüentemente em fase de certos preconceitos de moda e escola. 7
Para Buarque de Holanda “entre esses autores, Inglês de Sousa, não sendo certamente o mais dotado, era talvez o que melhor dominava os próprios recursos e o que menos se ocupava da platéia. Não sei até onde pode enganar essa impressão: a verdade, porém, é que um contraste com A Carne e o Atheneu, seu romance não denuncia grande esforço e nem obediência a um programa severo. Percorrendo-lhe às páginas, percebemos a tranqüilidade honesta e quase descuidada de quem reconhece e sabe aceitar as próprias limitações. Só a madureza de espírito pode consentir tal desembaraço. E Inglês de Sousa não ousam endossar plenamente seus escritos enquanto não teve mão assentada.” 8
Expondo os aspectos sociais e morais de uma existência sacerdotal, com a inevitável queda na floresta amazônica, retrata mais uma vez, segundo as regras materialistas, a força polivalente do meio a destruir implacavelmente a criatura humana. Mas não possui, como naturalista, aquela garra de consciência naturalista de Aluysio Azevedo. José Veríssimo achava que o romance tinha um grande defeito, “cuja gravidade não tentarei diminuir: a desproporção entre o assunto e o desenvolvimento que lhe deu o autor. O drama parece-me pequeno para tamanho cenário, o painel demasiado vasto para a pintura. Deste se não inicial derivam as máculas secundárias que uma crítica meticulosa poderia descobrir na sua composição: excesso e minúcias de descrições e narrações, amplificações de episódios, prolixidade, senão difusão do texto. Esses defeitos, porém, fundem-se e quase desaparecem na fluência da narrativa, na análise inteligente e, por vezes, sutil das caracteres, na excelência das descrições, no interesses que o escritor teve o talento de dar ao seu romance.” 8
O Missionário, romance inteiramente naturalista, fruto exclusivamente de reminiscências, e de leituras sobre o “inferno verde” da Amazônia. O Pe. Antonio de Morais, vigário da aldeia de silves, troca a apatia de um apostolado provinciano, sem sentido e sem drama, pelo heroísmo apostólico ou catequista em meio aos ferozes munducus. Parte para a gloriosa aventura missionária, movido dos mais nobres sentimentos, e do mais vivo idealismo, mas é vencido, em meio à selva bruta, pelas forças dissolventes do meio natural e humano, que fazem atuar, dentro de si, a fatalidade de outra força, do ponto de vista materialista não menos impositiva: a hereditariedade sacerdote acorda o descendente direto de “devasso fazendeiro do Igarapé-mirim.” Vencido pelos impulsos da carne e por todas as suas conseqüências, Antonio de Morais exemplifica chocantemente as teorias psicofissiológicas dos naturalistas.
No seu estudo sobre Inglês de Sousa diz Olívio Montenegro: “De O Missionário não há exagero em dizer que é o romance mais organicamente vivo e completo de quanto podemos filiar à escola naturalista do Brasil. A visão dramática da vida que o autor nos descreve ultrapassa, nas cenas mais características, os ângulos retos da sua visão científica. O leitor não sente facilmente que o romancista premeditou uma experiência como de laboratório com os seus personagens. Eles ordinariamente movem-se, agem, falam e pensam com uma espontaneidade tão natural, que ninguém os dirá servilmente tutelados por uma idéia, instrumentos de uma tese.” 9 Ou como diria Araripe Júnior no início do Prólogo da 2ª edição de O Missionário: “É um livro que entontece, embriaga e farta como uma bebida forte do Amazonas.”


Notas

1. A Educação em Sergipe através da sua história, Maria Thétis Nunes. Aracaju, Memórias de Sergipe, Vol. I – Educação, coordenação, Gilfrancisco, Correio de Sergipe, 2003.
2. Olímpio Campos, Pe. Antonio Carmelo. Uma biografia de Olímpio Campos, Luis Antonio Barreto (Apresentação). Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 2ª Ed. Revista e anotada, 2005.
3. Inglês de Sousa (textos escolhidos) org. Bella Jozef. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1963.
4. Homossexualismo preto & branco no romance Bom-Crioulo, Gilfrancisco. Ilhéus, Revista Kawé, Ano I, nº1, jan/dez, Universidade Estadual de Santa Cruz, 2002. Aracaju, Jornal da Cidade, 20/21 e 22. Abril de 2003.
5. A Fome, romance de Rodolfo Teófilo, Gilfrancisco. Aracaju, Jornal da Cidade, 5 de janeiro de 2003.
6. Solidão e angustia na alma de Raul Pompéia, Marinalva Alves (pseudônimo de Gilfrancisco). Salvador, A Tarde Cultura, 12 de outubro de 1991.
7. Inglês de Sousa: o Missionário, Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, Revista do Brasil, 3ª fase, IV – 35, maio, 1941.
8. Um romance da vida amazônica, José Veríssimo. Rio de Janeiro, Garnier, 1903. Estudos de Literatura Brasileira, 3ª Série, São Paulo, USP/Ed. Itatiaia, 1977.
9. O Romance Brasileiro, Olívio Montenegro. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1938.





O Liberalismo de Turgueniev


GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com



Propriamente falando, a literatura russa inicia-se no século XIX, em quase todos os seus gêneros vivia a sua fase áurea. Antes desse tempo, existia, unicamente, uma confusão de lendas, que os historiadores definem como essência folclórica: tradições de caráter muito diverso, quase sempre de clima rural. A sociedade e o povos das metrópoles ajustavam-se a um meio, geralmente de tendências religiosas, com predomínio de um evidente sentido personalista, onde o emotivo e o místico prevalecem, nunca, porém, refletindo o que pode ser considerado gênero literário.
Anterior à obra de Ivan Turgueniev, surge com valor essencial, que lhes fixa o seu lugar nas letras universais, alguns romancistas de máxima importância, como a baronesa Krudener (1764-1824), com o seu romance Valéria e Nicolau Gógol (1790-1852), de inconfundível personalidade, autor de Taras Bulba, uma história de cossacos do século XVII; com igual mérito, Turgueniev, cuja obra se insere entre o romantismo e o naturalismo, consegue fazer-se admirado pelo grande público.
Nascido em Orel, Rússia, em 28 de outubro de 1818, Ivan Sergueivêvtch Turgueniev, era filho de um coronel reformado e de uma rica e despótica proprietária de terras. Como Tolstói, foi educado em casa por professores particulares, igualmente a muitos escritores da época. Era comum nas famílias rica e nobre como a sua, ter em casa professores e instrutores, quase sempre franceses ou alemães, para que os filhos aprendessem a falar as línguas estrangeiras.
Tendo ingressado na Universidade de Moscou aos quinze anos de idade, onde permanece apenas um trimestre, transferindo-se em seguida para São Petersburgo como estudante de letras, formando-se ao fim de três anos em 1837, mas estivera também por algum tempo na Universidade de Berlim, regressando a Petersburgo para fazer doutorado, mas não chegou a terminá-lo.
Em Moscou e Petersburgo, veio a freqüentar o meio literário, então dominado por Púshkin, o maior poeta da Rússia, e Gógol, autor que influenciaria muitos escritores e teatrólogos do início do século vinte.
Durante o período em que morou em Berlim, capital da Prússia, Turgueniev entrou em contato com as idéias liberais que estavam se espalhando pela Europa e que iriam operar profundas transformações na estrutura político-econômica do Velho Continente. De volta à Rússia, trabalhou por pouco tempo na administração estatal, o suficiente para que resolvesse se dedicar totalmente à literatura. Esta decisão, aliada do frustrado romance com a irmã do anarquista Bakunin.
Em 1842, manteve uma aventura com a costureira de sua mãe, com quem teve uma filha por ele reconhecida e enviada mais tarde para a França. No ano seguinte, apaixonou-se por Pauline Viardot-Garcia, cantora de ópera, a quem se manteria ligado até o final de sua vida. Essa decisão, piorara a sua já difícil relação com a mãe (Lutovinova), de cuja tirania só se veria livre em 1850, quando ela morreu.
Turgueniev iniciou nas letras russas como poeta romântico, influenciado pela obra de Lermontov, publicando poemas em 1843, uma comédia Imprudência e uma novela curta Andréi Kólosov (1844). Insatisfeito com sua produção, estava resolvido à abandonar a literatura, mas o êxito de Jor e Kalinich lhe devolveu a esperança.
Em 1846, Nekrasov comprou a revista O Contemporâneo, a qual havia sido fundada por Pushkin em São Petersburgo, que seria durante vinte anos a mais importante publicação mensal da Rússia e a principal para o nascimento do movimento realista, na qual foram publicados quase todos os capítulos de Relatos de um caçador, que muito contribuiu para a abolição da escravatura do povo russo. O texto apresenta visões impressionistas da natureza, seu clima de melancolia e, principalmente, sua cálida simpatia para com os servos. O livro constituiu um sucesso e seu autor imediatamente colocado na primeira linha dos escritores russos.
Nesta mesma revista, Turgueniev publicou suas primeiras novelas Rudin; Ninho de Fidalgo e Tolstoi alguns capítulos de Infância, Adolescência e Juventude. O Contemporâneo deixou de circular em 1866 por determinação do czar, depois de ter sofrido um atentado.
No Brasil foram publicados vários livros de Turgueniev, alguns como: O Duelo (tradução H. L. Alves e E. Prado, Clube do Livro, 1973); Pais e Filhos (tradução Ivan Emilianovitch, Abril Cultural, 1ª. ed. 1943), é a amarga história de Bazarov, um herói niilista russo. Intelectual materialista nega o amor e a arte, recusa a religião, combate as tradições, tudo submete à experiência científica e acredita nos benefícios de uma revolução total. Bazarov é um rebelde que não aceita nenhum princípio sem exame. O amor, no entanto, o desarma e o conduz à morte. Pais e Filhos, um dos maiores romances políticos de todos os tempos, acaba de ser reeditado no Brasil pela editora Cosac & Naify, 356 páginas, com tradução de Rubens Figueiredo.
Rudin (tradução Elias Davidovich, Global Editora, 1983), foi publicado em 1855 e descreve a história comovente de um russo que não consegue converter os seus sonhos e conhecimentos em ação. Sua vida será assim, um interminável desajustamento. Rudin seria um gênero desconhecido, condenado ao fracasso pela obscuridade ou falta de sorte? Um ambicioso que não consegue alcançar os seus objetivos? Um parasita que termina por se tornar indesejável nos círculos que freqüenta? Ou um sonhador que passa a vida inteira chocando-se com a realidade? Nesta obra de Turgueniev, ele é o símbolo de todas as criaturas que não logram realizar-se na travessia da vida.
O Relógio e Memu (tradução T. Belinky, Scipione, 1997), são dois contos escritos em 1854 o primeiro e o segundo, dois anos depois. Alexei personagem-narrador de O Relógio relata uma história ocorrida durante sua juventude na Rússia do início do século XIX. Ele e seu primo vêem-se envolvidos em várias confusões após Alexei receber um relógio de prata de seu padrinho. Mumu - Guerássim é um surdo-mudo que trabalha para uma senhora rica, voluntariosa, cheia de caprichos e cercada de servos. Marginalizado por todos, Guerássim o solitário se afeiçoa profundamente a uma cadelinha, Mumu. A tirânica senhora decide tomá-la para si, mas, contrariada, ordena a expulsão de Mumu.
Através de metáforas simples, mas de grande poder simbólico, como o relógio de prata e a cadelinha Mumu, Turgueniev nos revela, nos dois contos reunidos nesse volume, o cotidiano da sociedade russa dos tempos finais do czarismo. O primeiro, transcorre no ambiente urbano e relata como a difusão da cobiça por valores materiais solapou as bases da solidariedade humana. O segundo, envolvendo a transferência forçada de um servo do campo para a cidade, descreve o contraste patético entre o sentido de dignidade e de amor a todas as criaturas de que eram capazes os humildes e a atitude fria e calculista dos poderosos. Para Ivan Turgueniev, era imperativo redimir as injustiças sociais para se restaurar a plenitude da condição humana.
Turgueniev foi um romancista com um excepcional sentido de composição literária, contos, novelas, romances, peças de teatro eram não somente bem acolhidas como ansiosamente esperadas. É considerado um dos maiores ficcionistas russos e ainda um dos grandes mestres da prosa: Ninho de Fidalgo (1859); Em Vésperas (1860); Pais e Filhos (1862); Fumo (1867); Terras Virgens (1877); O Primeiro Amor, O Rei Lear da Estepe, e um poema em prosa Umbral, onde evoca a figura de uma mulher revolucionária, baseado em Vera Zasulich, ativista que havia sido julgada e absorvida em 1878 pelo Tribunal, por ter ferido com um tiro o General Trepov, governador de São Petersburgo, dentre outros, asseguram-lhes um lugar ao lado de Dostoievski e Tolstoi.
O romancista morreu em Bougival, perto de Paris, a 22 de agosto de 1883. Conforme desejava foi enterrado em Petersburgo, junto ao túmulo do amigo Bielinsk a quem tanto admirava. Não resta dúvida que ele foi mais espectador do que doutrinário. Suas novelas escritas durante o reinado de Alexandre II, simplesmente descrevem os aspectos da sociedade de seu tempo, mas apesar de tudo, sua obra constitui um precioso diamante para o conhecimento da história social da Rússia do século XIX.
Estimulado pelo crítico literário V. Bielinsk, Ivan Turgueniev escreveu algumas peças baseado na tradição gogoliana, sendo a mais importante delas, Um mês no campo (1870), que coloca o autor entre os precursores do teatro moderno.
Do ponto de vista estético, sofreu decisiva influência de seu amigo Flaubert; em política, foi um liberal, partidário dos costumes ocidentais. Em toda sua obra refletiram os conflitos da fase de transição social, mostrando a vida dura dos camponeses e as posições ideológicas das camadas sociais superiores.
Turgueniev, não era um revolucionário, mas um defensor da liberdade, um democrata e antiescravista em suas criações, revelou ao ocidente a vida da nobreza provinciana russa, crente em Deus e fiel ao czar, toda sua obra é um relato de repugnância pela vida que dolorosamente viveu com toda tragédia do povo russo.