segunda-feira, 6 de julho de 2009

O POETA FERREIRA GULLAR

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com

"Escrevo pelo que me espanta e me comove" (Ferreira Gullar)

Enviado pelo Cinform (SE) ao Rio de Janeiro para receber o Prêmio Veríssimo de Melo, categoria "pesquisa e bibliografia", concedido pela União Brasileira de Escritores, pelo livro Musa Capenga – poemas de Edison Carneiro, o jornalista Gilfrancisco entrevistou com exclusividade o poeta Ferreira Gullar que completará em, 2010, oitenta anos de vida.
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Nascido na Rua dos Prazeres, 497 em São Luis, Maranhão, em 10 de setembro de 1930, José Ribamar Ferreira Gullar, poeta, crítico, dramaturgo, tradutor, contista, ensaísta e jornalista, muito cedo abandonou as brincadeiras de menino para se dedicar aos livros e a poesia. Na capital do país, aos 21 anos, logo publicaria A Luta Corporal, livro que abriu caminho para o movimento da poesia concretista do qual participou. Abandonando as vanguardas, assumiu uma nova atitude literária, engajada política e socialmente. Participando da resistência à ditadura militar, que se instaurou no Brasil em 1964, o poeta está sempre experimentando uma linguagem poética inovadora e comprometida na inesgotável busca do entendimento do homem. Perseguido, processado, preso e exilado, Gullar viveu em vários paises.
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Cinform – Poeta vamos começar do começo! Seus primeiros passos na literatura, o que você lia no Maranhão e quais poetas lhe influenciaram?
Ferreira Gullar – Não tem nada especial. Meu interesse pela poesia nasceu dos livros de escola, de ler as antologias poéticas. Eu tinha um interesse mais acentuado que outros alunos do mesmo colégio. Nasceu de ler esses poetas e do jornalzinho que começou a publicar vários poemas dos alunos. Fui fazendo uma poesia rimada, metrificada, com certo jeito parnasiano, foi assim que nasceu aos pouco.

Cinform – Como muitos jovens poetas que desejam ver seus livros impressos, você custeou as despesas da edição de "Um pouco acima do chão", publicado em 1949. Como ocorreu esse desejo de ser poeta?
Ferreira Gullar – Esse livro eu publiquei em São Luís, são poemas que foram escritos entre os dezoito e dezenove anos, época em que eu já trabalhava como locutor na Rádio Timbira. Guardei algum dinheiro e minha mãe me ajudou bancando o resto. O livro foi publicado assim numa pequena gráfica que ficava no fundo de uma igreja, na Rua do Egito. Então, foi assim que saiu esse primeiro livro, como todos os livros, isso ocorria não só no Maranhão. Mesmo mais tarde, alguns poetas, até como Drummond estava custeando seus livros, segundo ou terceiro livro. Naquela época, editora para publicar poesia era uma coisa muito rara.

Cinform – E sua vinda para o Rio de Janeiro e a nova profissão de jornalista?
Ferreira Gullar – Eu vim para o Rio em 1951, tinha 21 anos. Vim pelo interesse em participar da vida cultural e artística, pois São Luís, naquela época, tinha muito pouca informação, com pouca atividade cultural e eu tinha interesse em participar da vida cultural do país. O Rio de Janeiro, naquela época, era metrópole, a capital do país, e era o centro cultural mais importante. Por isso eu vim, conseguir um emprego no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários, numa revista que eles faziam, os irmãos Condé (José Elísio ) sobretudo o João Conde, diretor do Jornal de Letras (mensário de literatura e artes), no qual eu tinha ganho um concurso. Eles, no ano anterior haviam constituído um concurso de poesia de âmbito nacional e eu ganhei o primeiro lugar nesse concurso e isso também me animou a vir morar no Rio. Entrei em contato com João Conde e ele era o diretor dessa revista do IAPC e me arranjou um ‘bico’ para ficar trabalhando na revista, esse foi meu primeiro emprego.

Cinform – Na verdade, sua estréia para o grande público brasileiro ocorreu em 1954 com "A Luta Corporal", ainda custeado por você, mas impresso na Gráfica da revista O Cruzeiro. Fale um pouco dessa edição.
Ferreira Gullar – Em 1954, eu fui convidado a trabalhar na revista O Cruzeiro no setor de revisão de texto que era dirigido pelo romancista baiano Herberto Salles. Com isso eu dividia meu tempo entre a revista O Cruzeiro e a revista do IAPC, que mantinha meu salariozinho pequeno, mas um salário um pouco melhor da revista O Cruzeiros e com isso me animei a publicar meu segundo livro, que foi impresso na gráfica da revista O Cruzeiro. A própria gráfica foi quem editou o livro. Eu desenhei e paginei o livro. A primeira edição (bastante diferente da 2ª ed. de José Álvaro Editor 1966), original, com páginas em branco, com espacejamento, uma série de coisas que eu tinha bolado porque fazia parte da minha visão, da minha experiência poética com a poesia espacializada, que depois daria origem à poesia concreta.

Cinform – Foi isso que chamou à atenção dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo) e Décio Pignatari?
Ferreira Gullar – Quando eles leram o livro, o que chamou mais atenção neles era que o livro terminava com a implosão da linguagem, desintegração da sintaxe e uma implosão das palavras, dos vocábulos, esse fato chamou a atenção porque era um livro inusitado. A poesia brasileira naquela altura era dominada pela chamada "Geração de 45", uma geração formalista, oposto do que eu tinha feito, era uma geração que voltava ao soneto, voltava às redondilhas, voltava ao verso metrificado e rimado, era o contrário do movimento modernista inicial, que abandonou todas as formas e foi para o verso livre. Então aquilo era um retorno a essas formas anteriores clássicas. O meu livro era o contrário disso, era uma implosão. Os irmãos Campos e o Décio Pignatari, que queriam fazer uma nova poesia, por não se contentarem com a poesia que estava sendo feita pela "Geração de 45", também não sabiam qual era o caminho. Então meu livro ao desintegrar a linguagem, pelo menos deu a eles, segundo a conversa que tive com Augusto de Campos comigo, essa desintegração da linguagem tornou inviável a continuação de uma poesia que não fosse com uma nova forma.

Cinform – E como foi resolvida a questão?
Ferreira Gullar – Então nós começamos a dialogar e nasceu a poesia concreta a partir do nosso diálogo. Eu não sou o criador da poesia concreta, mas com certas idéias que eu passei a eles nessas conversas, tornou possível a criação dessa poesia concreta, porque eles, inclusive, falavam em criar um novo verso. Eu falei um novo verso não, se eu acabei de desintegrar a linguagem, não pode ter novo verso, tem que ser nova sintaxe. Qual será essa sintaxe? Eles bolaram nova sintaxe que era a sintaxe espacial, não mais o discurso, mas a junção das palavras dos espaços, assim nasceu a Poesia Concreta.

Cinform – Poetas estrangeiros como Mallarmé, Ezra Pound, Cummings, Verlaine foram traduzidos a partir dos anos 50 pelos Campos, você já tinha conhecimentos de textos desses poetas no Maranhão?
Ferreira Gullar – No Maranhão, eu tinha conhecimento de alguma coisa mais esporádica de um ou outro livro que por acaso havia chegado as minhas mãos. Quando eu entrei em contato com os Campos, eles não conheciam Mallarmé. O interesse deles era muito mais pela poesia inglesa, era mais por Ezra Pound e James Joyce. O Mallarmé fui eu que introduzir para eles, inclusive "Um Coup de Dês" que eles não conheciam. Ai eles passaram a se interessar. Por exemplo, eles desprezavam Oswald de Andrade, a primeira conversa com Augusto, quando ele falou no chamado "elenco de autores", usava essa expressão, o nossa elenco de autores, ele mencionava uma série de autores Ezra Pound, Joyce, João Cabral , Drummond e ficava por ai. Eu falei assim: o Oswald é um poeta de certo modo mais inovador em certos aspectos mais do que esses que você citou. Aí o Augusto falou: o Oswald é um esculhambado. Bom, se ele é esculhambado, eu não sei, estou falando da poesia dele e não da pessoa Oswald. Eu também não acho que ele seja uma pessoa esculhambada, conheço ele inclusive.

Cinform – Com foi esse encontro?
Ferreira Gullar – Veio me visitar aqui no Rio, porque tinha lido "A Luta Corporal" no original. Foi o seguinte: Oliveira Basto foi a São Paulo e levou para ele. Oswald se entusiasmou pelo livro antes de ser publicado e quando veio ao Rio de Janeiro, Oliveira Bastos o levou a minha casa, onde eu morava com uma companheira ali na Glória, perto da Rua Francisco Bicalha. O encontro ocorreu no dia do meu aniversário, era domingo. Tocou a campainha, quando fui abrir a porta, era Oswald de Andrade. Tomei um susto, de manga de camisa. Eu tinha essa relação com Oswald de Andrade e gostava dele, por isso que o Bastos levou o livro para ele ler. Porque eu tinha falado com o Bastos sobre Oswald de Andrade, e também havia comprado um livro seu num sebo, um livro de poesia e o Mário Pedrosa tinha me dado para ler o "Pau Brasil" e eu achava a poesia dele muito inovadora e falei isso com o Bastos, que indo a São Paulo procurou Oswald e começou uma relação.

Cinform – E a conversa com Augusto o convenceu?
Ferreira Gullar – Quando o Augusto conversou comigo, apesar de morar em São Paulo, ele não tinha conhecimento da poesia de Oswald de Andrade, só tinha conhecimento do Oswald de Andrade esculhambado, piadista. Então eu falei: você está equivocado, o Oswald (até usei essa expressão) possui uma linguagem dele, ademais ele é jovem, como se fosse uma folha verde, uma coisa verde, uma plantinha verde, uma coisa diferente, acho que se a gente está querendo fazer uma outra poesia, precisa ler o Oswald. A bem de a verdade, eles leram e se entusiasmaram, valorizaram ao ponto de redescobri-lo e revalorizar o Oswald, que estava esquecido, tanto que eu comprei o livro dele no sebo, foi a primeira coisa que li de Oswald "Serafim Ponte Grande" (1933). Eu comprei no sebo da Livraria São José, estava um amontoado no chão, uma série de livros sendo vendidos ao preço de três vinténs. Dessa conversa surgiu isso e o Oswald acabou sendo valorizado pelos irmãos Campos.

Cinform – E sua militância participativa no CPC?
Ferreira Gullar – O Centro Popular de Cultura é uma invenção de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho,) que pertencia antes ao Teatro de arena, iniciador do teatro político, mais comprometido com a evolução, com as mudanças da sociedade brasileira, era um teatro novo em contraposição ao Teatro Brasileiro de Comédia – TBC que era o teatro de Adolfo Celi, Ziembinski, Paulo Autran, enquanto o Teatro de Arena era um teatro de jovens de posição de esquerda e que pensava fazer um espetáculo visando um público diferente do público do TBC, um público mais pobre, mais proletário. Só que eles depois perceberam que gente pobre não vai ao teatro, não tem dinheiro nem hábito e isso criou uma divisão e o Vianinha não se conformava com a idéia de ficar fazendo espetáculos sobre operário para pequena burguesia assistir. Então ele se afastou do Teatro de Arena, veio pro Rio e criou um grupo para fazer teatro de graça, achando que se tivesse bilheteria o povão não iria. Daí surgiu o CPC. Como queria fazer tudo de graça, tinha de ter o apoio de alguma instituição para a própria sobrevivência do grupo. Veio a idéia de se juntar a UNE – União Nacional dos Estudantes. A UNE era dirigida na época pela AP – Ação Popular da juventude católica e o Partido Comunista era aliado na direção da UNE. O que a UNE deu ao CPC foi o local da sede que ficava na Praia do Flamengo, uma saleta onde a gente se reunia. Tinha um cara da direção do Partido que funcionava como assistente. Ia para discutir, trazer informações, orientação política, dizer o que estava acontecendo na área política, qual a avaliação que o partido fazia da situação política, mas o CPC era autônomo não era orientado pelo Partido, nem recebia dinheiro de ninguém. A própria UNE no seu orçamento incluiu uma ajuda que o governo dava para a instituição, repassando uma pequena parte para subvencionar as atividades do CPC, como montagem de espetáculos que eram na sua maioria montados nos Congressos da UNE, onde os estudantes que realizavam às vezes no Rio, Belo Horizonte e Bahia. O CPC realizou algumas publicações de cordéis, publiquei na época quatro. Eventualmente se publicava alguns livros de interesses do movimento estudantil, porque a UNE tinha uma pequena gráfica.

Cinform – Seu ensaio "Vanguarda e Subdesenvolvimento" (1969) provocou uma grande polêmica pela sua visão com conceitos inovadores na época. Você pensa em escrever um novo texto teórico sobre o assunto ou ele atualmente não existe no Brasil?
Ferreira Gullar – Veja bem, aquele livro é um livro que diz srespeito a um momento da cultura e arte brasileira, um momento específico que eu tentei analisar e me situar diante dele. É uma visão marxista da questão cultural, na última edição do livro (2002) eu faço alguns reparos às teses que defendo no livro, hoje eu não concordo com todas as teses que estão expostas no livro, mas no fundamental eu acho que o livro está certo. Quando ele chama à atenção do fato de uma vanguarda internacional à importação e à crítica de movimentos internacionais, estéticos de vanguarda, na verdade eles não ajudam ao desenvolvimento de uma arte autônoma. Um exemplo mais fácil: quando o rock tomou conta do mundo, a música popular de vários paises acabou. No Brasil, não acabou, embora tenha sofrido muito por pressão dessa música, porque houve uma geração que depois passou pro rock, só não acabou porque a tradição brasileira era muito forte, mas em muitos países acabou praticamente.

Cinform – Você é contra a essa invasão cultural ?
Ferreira Gullar – Não é que eu seja contra a música internacional, contra a arte que é feita em outros paises, acho que a arte tem um caráter universal e não se pode fechar os olhos e ignorar ou negar - o que não pode é fazer com que a influência externa mate, cale a voz das coisas que nascem aqui, da criatividade autônoma, porque quanto mais autonomia tem os artistas dos diferentes países, mais rica será a cultura e a arte do mundo inteiro. Se existe uma arte argentina própria da Argentina, uma arte brasileira própria do Brasil, não é que seja nacionalista, mas que nasça até com hostilidade com a contemporaneidade, mas que tenha raízes aqui, que não seja apenas imitação de uma coisa que venha de fora e que isso realmente estava acontecendo. Mas a razão principal é essa arte negativa "niilista" para destruir a própria arte, como a Bienal que está sendo aberta, chegou sem obra. É uma Bienal sem obra e isso já mostra tudo. Ontem eu assistia a uma entrevista do curador da Bienal, onde ele falou: pois é, antigamente as paredes estavam cheias de obras, hoje a gente pergunta o que é melhor é ter obras ou não ter obras, eu nunca vi isso. Se você vai fazer uma exposição de arte, coloca-se uma questão se deve ter obra de arte eu não entendo. Então não é mais arte, no fundo o que ele está dizendo é que isso que eles expõem não é mais arte, não interessa ele expor, é isso que ele está dizendo. Essa bienal tem os dias contados, isso é uma coisa velha, ultrapassada, não tem mais sentido, é a falsa vanguarda, a própria Bienal é uma instituição de vanguarda, tanto que ela não pode negar, registrar nada, quanto mais louca for a proposta que o artista faça para ela, não pode rejeitar porque ela tem medo de ficar na retaguarda. Por isso aceita tudo, porque ela é de vanguarda, também a instituição é de vanguarda, ela nasceu para ser de vanguarda, são as coisas mais absurdas. Agora nessa Bienal um cara fez um tobogã, ele vai até o último andar do prédio e desce de tobogã, é a obra dele. Quer dizer, tobogã no parque de diversão é "tobogã", mas lá na Bienal é "arte". É a instituição que faz um tobogã virar uma obra de arte, isso é uma palhaçada. Então era isso que eu combatia. Alguns aspectos ortodoxos da visão marxista que estão presentes no livro, também estão equivocadas, eu acho que não é isso, eu ainda não tinha uma visão crítica de determinados problemas que depois pude observá-los. Hoje eu olho criticamente as coisas que escrevi anteriormente.

Cinform – "Poema Sujo" (1976), livro publicado em vários países, nasceu no exílio. O que levou o poeta Ferreira Gullar a essa ruptura lingüística, política e memorialista?
Ferreira Gullar – Poema Sujo é um dos poucos livros, talvez o único livro de poesia que tenha sido best-seller, porque ele estava na lista da revista Veja, entre os livros mais vendidos permanecendo na lista por várias semanas, foi uma coisa excepcional. Eu escrevi o livro em condições muito dramáticas, difícil porque eu estava exilado na Argentina. Já depois de vários anos de exílio e bastante apreensivo com o que estava acontecendo na Argentina, eu havia saído do Chile onde tinha ocorrido a queda do presidente Salvador Allender e tinha ido para Argentina onde começava um movimento para também derrubar Isabelita, do governo eleito. Então eu via compreensão, eu tinha notícias também dessa ligação da polícia brasileira, da polícia secreta militar, juntas com os argentinos e chilenos uma rede para prender os chamados subversivos como nós e por isso eu vivia numa situação difícil, não tinha para onde ir, meu passaporte tinha sido cancelado pelo Itamaraty, então eu escrevi o poema assim, como eu costumo dizer: como se eu escrevesse a última coisa da vida, enquanto é tempo eu vou escrever, que me resta escrever. O poema foi assim.

Cinform – Hoje o "Poema Sujo" encontra-se na13 edição. Em 2002, comemorou-se 30 anos da publicação da obra e saiu uma edição em sua homenagem, trazendo como brinde um CD com o poema lido na voz do poeta, patrocinado pelo Instituto Moreira Salles. Como ocorreu essa parceria com a José Olympio?
Ferreira Gullar – O Instituto Moreira Salles fez um pequeno documentário comigo que é a leitura do poema, registro filmado. Eu entro no auditório, eles me acompanham, em seguida vou até o microfone e começa então a leitura do poema. Quando, José Olympio teve a idéia de fazer a edição junto com o CD, eu falei: em vez de gravar outra vez, o poema existe na trilha sonora do filme. Ai eles falaram com o Instituto que cedeu a gravação do poema somente para esta edição. A gravação do poema é a mesma que está no filme.

Cinform – Seu livro de contos "Cidades Inventadas" (1996) é uma de suas obras menos conhecidas. O que você atribui a esse não entendimento da crítica e dos professores universitários a não adotá-lo nos cursos de letras.
Ferreira Gullar – As pessoas que leram o livro gostam muito, mas eu acho, talvez pelo fato de ser poeta. Primeiro não existe crítica literária no país, o pouco que existe é uma coisa acadêmica e pouco sensível ao que é diferente. Esse pessoal estabelece determinados critérios e fica atuando dentro daquilo, são incapazes de perceber. Por exemplo "Cidades Inventadas", modesta parte é um livro bastante inovador, o primeiro conto desse livro Odon foi escrito em 1955 e ele tem uma visão da América Latina e do Brasil, enfim do que é a vida nas cidades urbanas, o que é bastante inovadora e que precede o Macondo do romancista Gabriel Garcia Márquez, não é o Macondo, precedo o Macondo que é anterior. Eu não tive maiores pretensões, escrevi aquilo como faço as minhas coisas, pelo prazer de escrever, pela necessidade de escrever, não faço com propósito de fazer vanguarda, inovar, eu faço pela necessidade. Então "Cidades Inventadas" é um estranho livro de contos porque não tem personagens, as personagens são cidades que eu inventei, por isso ele é estranho e também é uma falsa história. Foi escrito com se fosse um historiador que estivesse escrevendo aquelas histórias, tanto que têm notas de pé-de-página, referências bibliográficas, mas é tudo mentira, tudo falso. Os livros citados não são livros, é tudo falso, tudo inventado. Agora as pessoas que leram gostaram, mas os críticos e professores não se deram o trabalho de ler.

Cinform – Como é Ferreira Gullar, que é poeta, ser apresentador de um programa de entrevistas (Gerações), num canal de TV fechada?
Ferreira Gullar – Eu sempre tive diferentes atividades, porque não dá para viver de poesia. Fui locutor de rádio no Maranhão, depois jornalista profissional no Rio de Janeiro e essa é minha profissão e a vida inteira eu trabalhei em jornal até me aposentar. Fui durante muito tempo copy-desk, chefe de copy-desk de jornal, ajudei a transformação do Jornal do Brasil, a renovação do Jornal do Brasil, continuei trabalhando em outros jornais e na televisão eu fui chamado pelo Dias Gomes quando voltei do exílio para fazer teledramaturgia junto com ele. Portanto a minha ligação com a televisão também é anterior a esse programa, não como apresentador, mas trabalhando na televisão. Um amigo meu que é pernambucano, Roberto Viana, empresário da área de comunicação e fã da minha poesia, assinou um contrato com a STV (Televisão Sesc/Senac) para uma série de programas chamados "Gerações".
E a idéia dele era que eu, de uma geração mais velha, dialogasse com pessoas de diferentes gerações, essa era a idéia inicial do programa, mas eu fiz durante três anos. Gravava quatro programas por semana e era apresentado um por mês, mas faz muitos anos que isso terminou que deixei de gravar. Sei que o programa continua sendo reprisado por várias emissoras. Você é capturado por ele e passa a ser usado, não se passa um dia que não apareça alguém para me dizer que assistiu o programa, antes era exibido na TV Educativa, depois passou para TV Senado, ouvi alguém dizer que estava na Rede Brasil, acho que há um contrato entre eles mas não nos informam nada. Tenho noticias porque as pessoas gostam do programa, porque eu sou o que menos fala no programa. Às vezes digo brincando ser o contrário do Jô! Quando entrevisto as pessoas, eu pergunto e a pessoa fala, só volto a perguntar se o que ele respondeu dá cabimento, eu ali sou o público, que quer saber, quer esclarecer as coisas que estão sendo conversadas, ali eu não fico pregando, a não ser um momento ou outro quando tem uma idéias que eu acho que é interessante fazer uma intervenção, ampliar a discussão é que eu faço uma interferência um pouco mais demorada. Mas, na maior parte do tempo, sou o público ouvindo e questionando as pessoas que estão sendo entrevistadas.

Cinform – Você não é afeito a prefaciar livros de poetas emergentes, mas já escreveu dezenas de críticas literárias e textos sobre artes que foram publicados em diversos periódicos. Já pensou em reunir esse material em livro. ?
Ferreira Gullar – Evito fazer apresentações porque isso me cria muitos problemas, eu não posso ficar o tempo todo lendo livros dos outros e fazendo prefácios se não eu não trabalho. O material de artes plásticas uma parte já está reunida. Atualmente colaboro na revista Continente, de Pernambuco, onde escrevo sobre artes plásticas. Os artigos que saíram em Continente ainda não estão reunidos em livros. Mas os artigos que foram publicados em outros lugares há mais tempo já foram reunidos em livro. Recentemente fui informado que a José Olympio pretende fazer uma edição dos textos sobre artes que tenho publicados na revista Continente. A proposta está sendo estudada, eu ainda estou fazendo uma seleção para ver. As minhas crônicas colaboradas na Folha de São Paulo foram publicadas no livro "Resmungos", pela Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, um livro de formato grande, encadernado com ilustrações do ilustrador da época que era Antonio Henrique Amaral, esse inclusive ganhou o Prêmio Jabuti. Em 2001, a Editora Ática publicou "O Menino e o arco-íris", na coleção "Para Gostar de Ler", uma seleção de crônicas antigas para jovens. Em 2006, foi a vez da Editora Global que publicou uma antologia das minhas crônicas, um livro com quase trezentas páginas.

Cinform – Atualmente a Literatura de Cordel tem obtido grande divulgação na mídia. Está presente nas escolas de 1º e 2º graus e nos concursos de vestibulares. Você não acha oportuno a re-edição dos seus cordéis (1962-1967) separadamente do volume de "Toda Poesia"? Por que não editar um único volume dos cordéis: João-Boa-Morte, cabra marcado para morrer; Quem matou Aparecida; Peleja de Zé Molesta com Tio San e História de um valente?
Ferreira Gullar – É, Gilfrancisco, eu não tinha pensado nessa possibilidade. Como você sabe, todos eles foram publicados em "Toda Poesia". A Editora José Olympio é quem publica minha obra e eu sugeri que se fizesse além do volume de "Toda Poesia", fizesse também separadamente as edições dos diferentes livros, para viabilizar a compra, até porque pessoas que já tenham dois livros teriam que comprar tudo de novo, não é justo, por isso sugerir a publicação separadamente de cada livro. Você tem Dentro da Noite Veloz (separado), Barulhos (separado), Poema Sujo (separado), Na Vertigem do Dia (separado), Crime na flora (separado), ou seja, todos esses livros estão separados. Os cordéis realmente nunca foram editados separadamente, esse sua sugestão é bem vinda, eu vou falar com a Maria Amélia, diretora de edições da José Olympio, talvez fosse uma coisa interessante.

Cinform – Você foi parceiro de Caetano Veloso com o poema "Onde Andarás", que faz parte do seu primeiro LP individual prensado em 1968. Em que circunstância ocorreu a parceria e por que não houve continuidade como a estabelecida com Raimundo Fagner com quem tem vários poemas musicados: Traduzir-se; Me Leve – cantiga pra não morrer; Rainha da vida. Contigo e outras?
Ferreira Gullar – Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi a Maria Bethânia que me pediu, se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor-de-cotovelo que ela queria gravar no seu disco de estréia. Então fiz e entreguei a ela duas letras, uma é "Onde Andarás" e a outra é um poema que também é do mesmo livro, que eu adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou uma delas, o outro poema eu acho que inspirou "Alegria Alegria", porque fala "atravessa a rua, entra no cinema" é um poema urbano, que fala exatamente da cidade e o enfoque é o mesmo e o fato dele não ter posto música na minha letra e ter escrito "Alegria Alegria" dá a impressão de que ele achou melhor criar uma letra sobre aquele assunto. Existe na música "Alegria Alegria" uma expressão que é de um poema meu "o sol se reparte em crimes" isso é de um poema que diz assim: "A tarde se reparte em yorgut, coalhada, copos de leites" esse uso do verbo repartir nesse sentido é do poema "Na Leiteiria". "A tarde se reparte em copos de leite", "o sol se reparte em crimes/espaçonaves guerrilhas". Tudo bem, a função da poesia é essa, o poeta inventa as expressões e o artista popular, o compositor não tem essa função - é muito mais a de comunicar de maneira ampla com o público, não é de mudar a linguagem, de reinventar a linguagem isso é mais dos poetas. O caso do Fagner é diferente, ele me procurou, ele buscou meus poemas e nos tornamos amigos, eu gosto muito dele, tenho uma grande amizade por esse cearense. De vez em quando ele me liga ou me escreve, até me pediu outro dia para que eu colocasse letras numas músicas que ele enviou num cd, por problemas técnicos a mídia não funcionou ficando eu impossibilitado de ouvir as músicas. Mas houve um impedimento, primeiro que eu não tenho muita capacidade de colocar letras em música, o único caso que conseguir isso de maneira bastante satisfatória foi o "Trenzinho do Caipira" de Villa Lobos. Na verdade eu tenho dificuldade, primeiro porque eu fico sem saber que assunto é, porque não escrevo com facilidade. Eu, em geral, sou levado a escrever por alguma coisa que me espanta, que me surpreende, que me comove. Pegar uma música e saber que sentido tem aquilo... eu não sei que sentido tem aquela música. A música tudo bem, pela melodia a gente se guia, mas o que vou escrever? Como é que eu vou transformar aquilo em palavras, eu não consigo é muito difícil. Isso é coisa pro Caetano e Chico, eles entendem disso. O Capinan tem uma experiência de letrista que não tenho é um outro departamento.

Cinform – Poeta, em 2010, você completa oitenta anos. Já foi procurado por alguma instituição de ensino superior ou órgão governamental para organizar e promover um evento em sua homenagem?
Ferreira Gullar – Acho que ninguém está pensando nisso nem mesmo eu, e nem fui procurado por ninguém. Sinceramente não estou preocupado com isso. Quando eu fiz setenta anos, um amigo meu que trabalha nessa área de promoções junto com o Museu de Arte Moderna do Rio, fez uma homenagem, em que participaram Adriana Calcanhoto, a nossa grande atriz Fernanda Montenegro que recitou alguns poemas meus. Foi uma homenagem bonita e havia ainda uma exposição de vinte seis artistas, que me presentearam a coleção "Ferreira Gullar", alguns como João Câmara, Siron Franco, Amilca de Castro. Eu doei essa coleção ao Museu de Arte Moderna do Rio. Ao invés de ser presenteado doei as vinte seis obras ao MAM e até hoje o Museu não consigna em uma relação de acervo as obras. É uma coisa inteiramente estranha, eu doei as obras e o MAM nunca publicou a relação dessas obras da coleção "Ferreira Gullar", tenho até medo das obras desaparecerem. Como o Museu não consigna a presença das obras, eu preciso saber o que está acontecendo, porque já ouve caso de obras desaparecerem no Museu, uma coleção de gravuras de Roberto De Lamonica doada a esta instituição quando encontrava-se doente em Nova York, entregue pela artista e gravadora Tereza Miranda, sumiu no ano seguinte. Por esse motivo é que eu temo com o que possa acontecer a coleção "Ferreira Gullar".

Um Espelho de muitas imagens em Inglês de Sousa

Avô do modernista Oswald de Andrade, Inglês de Sousa foi presidente da província de Sergipe (1881-1882), onde implantou reformas na instrução pública.

GILFRANCISCO; jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

Em 1989 estive pela primeira vez em Belém – Pará participando do X ENEL – Encontro Nacional dos Estudantes de Letras (9 a 13 de outubro, coincidindo com as festividades religiosas do Círio de Nazaré realizada no segundo domingo), onde apresentaria uma comunicação sobre Mário de Andrade. a organização geral do evento distribuiu material aos participantes e junto veio um exemplar do livro “O Cacaulista (cenas da vida do Amazonas)”, coleção Amazônica, publicado pela Universidade Federal do Pará (1973) e ilustrações de Rudol Riehl. Esse foi meu primeiro contato com Inglês de sousa, somente alguns anos depois leria sua obra máxima, O Missionário.
Origens
Herculano Marcos Inglês de Sousa, nasceu em Óbidos em 28 de dezembro de 1853, pequena cidade da província do Pará, situada na época a 200 léguas da capital na margem esquerda do Amazonas, próxima da foz do Trombetas. Filho do Desembargador Marcos Antonio Rodrigues de Sousa e de D. Henriqueta Amália de Góis Brito Inglês. Origina-se de uma das mais antigas famílias paraenses.
Terminados os primeiros estudos em sua terra natal, segue para o Maranhão onde faz o curso ginasial e o preparatório no Recife e matricula-se na Faculdade de Direito do Recife em 1870 e passa férias com a família mo Pará – a última vez em que esteve na região amazônica, conclui o curso em São Paulo em 1876, ano em que publica “Cenas da vida do amazonas: História de um pescador”.
Em 1878, casa-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha bisneta de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Dessa união nasceu Inês Inglês de Sousa (paraense falecida em 1912), que mais tarde se casaria com o mineiro José Nogueira de Andrade (falecido em fevereiro de 1919) e juntos tiveram um único filho, José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954), a figura mais expressiva do Modernismo Brasileiro. Filho de família abastada, Oswald viveria, sobretudo, de rendimentos imobiliários, conhecendo, porém reveses de fortuna.
Inglês de Sousa dedica-se à política e ingressa no Partido Liberal e ao jornalismo, fundando O Diário de Santos e a Tribuna Liberal e com o Dr. Antonio Carlos a Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras. Foi secretário da Relação de São Paulo; deputado à Assembléia Provincial e elabora o projeto de criação da Escola Normal. Beneficiado pelas circunstâncias então favoráveis aos liberais, Inglês de Sousa galgou posições com rapidez.
Em 1822 é eleito presidente do Espírito Santo, volta a Santos e candidata-se a Assembléia Geral. Um ano depois, a conselho médico abandonava a política e advoga em Santos. Em 1890 muda-se para São Paulo e funda o Banco de Melhoramentos de São Paulo e dois anos depois, transfere-se para a capital federal e como especialista em direito comercia, iniciou essa disciplina na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, sendo mais tarde nomeado diretor.
Em 1896 participa da fundação da Academia Brasileira de Letras, de cujo projeto de Estatutos foi redator. Em 1908 foi eleito Presidente do Instituto da Ordem dos Advogados e do 2º Congresso Jurídico Brasileiro. Oito anos depois, se representa o Brasil no Congresso Financeiro Pan Americano em Buenos Aires no qual foi escolhido Presidente da comissão para verificação da legislação sobre letras de câmbio. Quando de Sousa morreu a 6 de setembro de 1918, aos 62 anos no Rio de Janeiro, estava as vésperas do fim da guerra, o armistício foi assinado em novembro e o tratado de Versalhes em 1919. O grande romancista foi sepultado no cemitério de São João Batista com um “dos maiores acompanhamentos de que há memória”, segundo relatou O País no dia seguinte.
Presidente em Sergipe
Após exercer o mandato de deputado na Assembléia Provincial de São Paulo pelo Partido Liberal e criar o projeto de reabertura da escola normal e nomeado pelo conselheiro Saraiva para atuar como Presidente da província de Sergipe. Sergipe enfrentava um momento político delicado, o Partido Liberal se achava dividido na pequena província, era preciso nomear alguém de fora para coordenar a realização do processo eleitoral para deputado provincial e deputado geral do Império.
Depois de realizar uma gestão conturbada de mais ou menos dez meses, na qual realizou uma ampla reforma no ensino primário, secundário e normal, foi transferido para a Província do Espírito Santo, lugar em que também reformou a instrução pública. Como presidente da província de 18 de maio de 1881 a 22 de fevereiro de 1882, publicou em Aracaju a “Reforma e Regulamento da Instrução Pública (1881). A instrução pública reformada foi compreendida por Inglês de Sousa como a única esperança possível para a modernização que ele empreendeu, foi produzida de acordo com suas convicções liberais e positivistas, sobre as virtudes da educação como fator de progresso, que não prescinde da necessária laicização do ensino.
O Regulamento de 11 de setembro da reforma da Instrução Pública do Presidente Inglês de Sousa, nome de projeção nos meios literários do país, com romances marcados pela Escola Naturalista, suprime o ensino religioso das escolas públicas, introduzindo a educação laicizada num desafio à tradição, abrindo espaço à co-educação ao determinar que as escolas públicas seriam freqüentadas por estudantes de ambos os sexos.
O Atheneu Sergipense passou a ser Liceu Secundário de Sergipe com o curso seriado de seis anos. O art. 1º do Regulamento de 5 de junho de 1881 determinando que haverá nesta capital uma Escola Normal destinada a habilitar indivíduos de ambos os sexos na teoria e na prática do ensino primário, a qual seria inaugurada, solenemente em 16 de agosto do mesmo ano. A Escola Normal mista criada por Inglês de Sousa “sofreu críticas violentas e apaixonadas, escandalizando a sociedade patriarcal ao desafiar a tradição da separação dos sexos, considerada pela crítica, liderada pela Pe. Olimpio [uma casa de hermafroditas]”. 1
O Pe. Olimpio Campos (1853-1906) publicou vários textos dirigidos ao presidente da província, condenando a reforma, oferecendo-se para ensinar, sem custos, a cátedra religião “provocando uma das mais ruidosas polêmicas, da qual participou, sob o pseudônimo de Homo, o encarregado da alfândega, Sousa Botafogo. Por todo o confronto verbal, Olímpio Campos jamais soube quem era seu verdadeiro contendor, atribuindo os artigos dos jornais ao próprio presidente Inglês de Sousa.” 2
Talvez esse embate tenha influenciado o Pe. Olímpio Campos a entrar na política, candidatando-se pelo 2º Distrito, o de Estância que abarcava as paróquias de Itabaianinha e Cristinápoles e quando eleito deputado provincial (1882) apresentou projeto de lei restituindo a cátedra de ensino religioso à Escola Normal. Foi ainda deputado geral no Império (1885-1886, 1886-1889). Com a saída do Presidente Inglês de Sousa, a Escola Normal passou a existir duas, uma masculina e outra feminina.
Escola Naturalista
Entre os anos de 1876 e 1877, quando estudante de direito, Inglês de Sousa, dá a público nada menos do que três romances, O cacaulista, História de um pescador e O coronel sangrado. Apesar de ter publicado em primeira mão, romances classificados como naturalistas não garante a Inglês de Sousa a posição de fundador da “escola naturalista”, pois estamos acostumados a ver nas cronologias e manuais da historiografia literária o nome de Aluysio Azevedo como marco inicial do Naturalismo no Brasil.
Alceu amoroso Lima afirma que “Inglês de Sousa representa, na historia do romance brasileiro, a passagem do romantismo ao naturalismo. Não a um naturalismo marcado pela influência de Zola como foi o caso de Aluysio Azevedo, cujo Mulato de 1881, representa o início oficial da nova escola, mas um naturalismo, por assim dizer, intrínseco, marcado pela influência ideológica da Escola do Recife e, principalmente, pela influência do ambiente amazônico, com que o Pará marcou sua infância e sua adolescência.” 3
A Escola Naturalista que aplicando à arte os métodos da ciência positiva visava a reproduzir a sua realidade com uma objetividade perfeita e em todos os aspectos, mesmo os vulgares. Essa escola constituiu-se em 1860 e 1880 soa a dupla influência do realismo de Flaubert e do positivismo de Taine. No Brasil, o principal representante da estética naturalista foi Aluysio Azevedo, que, em 1881, com a publicação de O Mulato tornou-se o introdutor do movimento entre nós. Sua obra máxima, O Cortiço (1890), constitui também a melhor contribuição do naturalismo brasileira. Menores, mas mais representativos do ideário naturalista – e dos excessos que o esgotaram – foram Júlio Ribeiro; A Carne (1880); Adolfo Caminha, a Normalista (1893), Bom Crioulo (1895), 4 e o próprio Inglês de Sousa, com O Missionário (1888). Se de um modo geral, o Naturalismo na literatura brasileira não passou de momento esporádico no âmbito da afirmação das idéias positivistas e cientificistas em voga no fim do século XIX, coube-lhe o papel de iniciar a tradição regionalista, que se prolongou até a instauração do romance moderno.
O positivismo de augusto Comte afirmava que as únicas verdades que o homem pode conhecer são as decorrentes da observação e da experiência; o determinismo social de Hippolyte Taine dizia que o homem é produto do seu meio, sem que o livre-arbítrio ou a vontade própria tenham muitas influências. A combinação das idéias desses filósofos franceses foi o poderoso motor de uma nova escola literária, o Naturalismo.
Em sua vertente regional o Naturalismo brasileiro encontrou nos autores cearenses preocupados com o declínio econômico do Nordeste (secas e migração), representantes importantes como Rodolfo Teófilo, A fome (1890) 5, Manuel de Oliveira Paiva, D. Guidinha do Poço (1891) e Domingos Olimpio, Luzia-homem (1901).
O Cacaulista
Ao propor-se escrever uma série de narrativas sob o título geral de cenas da vida do Amazonas, Inglês de Sousa enfrenta as dificuldades inerentes à transferência do eixo narrativo para as regiões do interior. O cacaulista, primeiro da série, passa-se, como informam as linhas iniciais, “algumas milhas acima da cidade de Óbidos, à margem do Piranamiri.” A história gravita em torno da rivalidade, por questões de terra, entre o adolescente Miguel e o tenente Ribeiro, complicada pelo fato de o jovem está apaixonado pela filha do desafeto. Mas Rita acaba por casar-se com Moreira, moço da cidade, inculcada pelo pai. Os amores difíceis de Miguel e Rita, filha do tenente Ribeiro, mulato enriquecido pela exploração dos vizinhos, se imbricam com os conflitos socioeconômicos de uma comunidade em formação, na grandiosidade esmagadora da Hiléia.
Escrito em 1875 na cidade do Recife, quando o autor cursava o quarto ano da Faculdade de direito, foi publicado um ano depois e teve uma 2ª edição em 1973, pela Universidade Federal do Pará, coleção Amazônica, série Inglês de Sousa, dirigida pelo professor Arthur Cezar Ferreira Reis. Nesta sua obra de estudante, Inglês de Sousa historia a decadência da família rural, no Baixo-amazonas do fim do século XIX. Descrevendo de maneira impressionante um aglomerado humano, fixando com exatidão o meio-ambiente e focaliza, com nitidez, o ciclo regionalista no qual decorre o enredo do seu romance.
Minucioso nos detalhes, na paixão pela terra, no registro dos diálogos, Inglês de Sousa conseguiu elaborar um trabalho que é verdadeiro documento sociológico. Neste volume de estréia, Inglês de Sousa revela-se uma autêntica vocação para os segredos ficcionistas. Considerando-se a época de sua publicação, ele se tornou, para o tempo, um romance audacioso, construído com invulgaridade e ousadia.
O Coronel sangrado
Devemos ao estudo de Lúcia Miguel Pereira, ao analisar a literatura brasileira no período de 1870 a 1920, a constatação que iniciou cronologicamente (1877), o naturalismo no Brasil, com o romance do paraense “O Coronel sangrado” de Inglês de Sousa, naturalista não na técnica, mas no espírito. Durante muitos anos foi difícil estudar a obra de Inglês de Sousa, em virtude dos seus romances não serem reeditados. O romancista e contista João Pacheco ao escrever o volume III (Realismo, 1870-1890) para integrar a coleção “A Literatura Brasileira, publicado pela Cultrix, em 1971, 4º Ed. Ao examinar a obra de Inglês de Sousa, afirma ser inacessível os romances, O Cacaulista (1876) e O Coronel sangrado (1877). O primeiro teve uma segunda edição em 1973, o segundo em 1968, ambos publicados pela Universidade Federal do Pará, revelando para muitos a concisão, a velocidade e a atualidade da narrativa do romancista obidense. Ainda em 2003 a universidade voltou a reeditar a obra com o apoio do Banco do Amazônia e o livro ganhou mais 76 páginas, uma apresentação de Amarílis Tupiassu, abas assinadas por José Arthur Bogéa e fotografias.
Em o Coronel sangrado, Miguel está em Óbidos e destaca-se na narrativa dos acontecimentos dessa cidade provinciana, a disputa política entre conservadores e liberais O tenente-coronel Severino de Paiva Prestes era chamado de o coronel sangrado, por seu hábito de receitar sangrias para solucionar problemas de doenças, com certo êxito. Pretendia o tenente-coronel Severino eleger Miguel vereador por quem se afeiçoara e decidira fazer dele seu protegido. No entanto, os planos do coronel Sangrado malogram, entre outros motivos pelas intrigas paroquiais que se desenvolvem. Morre o Coronel sangrado e Miguel, que nunca esquecera Rita, acaba tendo a realização de sua paixão, quando Moreira também morre num acidente, casando com ela, não sem antes passar cinco anos em Belém do Pará, de onde volta com certo ar de moço da cidade e resolvendo o problema do final aberto do primeiro volume.
Inglês de Sousa publicou cinco livros, todos de temática realista-naturalista, entre 1876 e 1893. Os três primeiros, O Cacaulista, História de um pescador e O Coronel sangrado, publicados num período ainda dominado pelo Romantismo. O maranhense Josué Montello, no prefácio da reedição de 1968 diz ser O Coronel sangrado “livro que revela, nessa hora matinal, os pendores de romancista e o que confere a seu autor uma preeminência ao monólogo, na história do romance naturalista em nosso país.”
O Missionário
No ano em que foi escrito o romance “O Missionário” (1888), publicaram-se duas obras que, por motivos bem diversos, embora igualmente considerados, se destinavam a marcar época na história do nosso romance: A Carne, de Júlio Ribeiro e O Atheneu, de Raul Pompéia. 6 Sergio Buarque de Holanda, comenta em artigo o porque da aclamação de ambas as obras: “O rumoroso sucesso alcançado por aqueles romances destoa singularmente da atitude discreta ou desatenta com que foi acolhido este outro, publicado no mesmo ano e pertencente à mesma orientação: O Missionário, de Inglês de Sousa. A diferença de tratamento é tanto mais injusta quanto o descaso pela obra do escritor paraense não provém de seus defeitos reais, ou provém menos desses defeitos do que da liberdade que o autor pode manter freqüentemente em fase de certos preconceitos de moda e escola. 7
Para Buarque de Holanda “entre esses autores, Inglês de Sousa, não sendo certamente o mais dotado, era talvez o que melhor dominava os próprios recursos e o que menos se ocupava da platéia. Não sei até onde pode enganar essa impressão: a verdade, porém, é que um contraste com A Carne e o Atheneu, seu romance não denuncia grande esforço e nem obediência a um programa severo. Percorrendo-lhe às páginas, percebemos a tranqüilidade honesta e quase descuidada de quem reconhece e sabe aceitar as próprias limitações. Só a madureza de espírito pode consentir tal desembaraço. E Inglês de Sousa não ousam endossar plenamente seus escritos enquanto não teve mão assentada.” 8
Expondo os aspectos sociais e morais de uma existência sacerdotal, com a inevitável queda na floresta amazônica, retrata mais uma vez, segundo as regras materialistas, a força polivalente do meio a destruir implacavelmente a criatura humana. Mas não possui, como naturalista, aquela garra de consciência naturalista de Aluysio Azevedo. José Veríssimo achava que o romance tinha um grande defeito, “cuja gravidade não tentarei diminuir: a desproporção entre o assunto e o desenvolvimento que lhe deu o autor. O drama parece-me pequeno para tamanho cenário, o painel demasiado vasto para a pintura. Deste se não inicial derivam as máculas secundárias que uma crítica meticulosa poderia descobrir na sua composição: excesso e minúcias de descrições e narrações, amplificações de episódios, prolixidade, senão difusão do texto. Esses defeitos, porém, fundem-se e quase desaparecem na fluência da narrativa, na análise inteligente e, por vezes, sutil das caracteres, na excelência das descrições, no interesses que o escritor teve o talento de dar ao seu romance.” 8
O Missionário, romance inteiramente naturalista, fruto exclusivamente de reminiscências, e de leituras sobre o “inferno verde” da Amazônia. O Pe. Antonio de Morais, vigário da aldeia de silves, troca a apatia de um apostolado provinciano, sem sentido e sem drama, pelo heroísmo apostólico ou catequista em meio aos ferozes munducus. Parte para a gloriosa aventura missionária, movido dos mais nobres sentimentos, e do mais vivo idealismo, mas é vencido, em meio à selva bruta, pelas forças dissolventes do meio natural e humano, que fazem atuar, dentro de si, a fatalidade de outra força, do ponto de vista materialista não menos impositiva: a hereditariedade sacerdote acorda o descendente direto de “devasso fazendeiro do Igarapé-mirim.” Vencido pelos impulsos da carne e por todas as suas conseqüências, Antonio de Morais exemplifica chocantemente as teorias psicofissiológicas dos naturalistas.
No seu estudo sobre Inglês de Sousa diz Olívio Montenegro: “De O Missionário não há exagero em dizer que é o romance mais organicamente vivo e completo de quanto podemos filiar à escola naturalista do Brasil. A visão dramática da vida que o autor nos descreve ultrapassa, nas cenas mais características, os ângulos retos da sua visão científica. O leitor não sente facilmente que o romancista premeditou uma experiência como de laboratório com os seus personagens. Eles ordinariamente movem-se, agem, falam e pensam com uma espontaneidade tão natural, que ninguém os dirá servilmente tutelados por uma idéia, instrumentos de uma tese.” 9 Ou como diria Araripe Júnior no início do Prólogo da 2ª edição de O Missionário: “É um livro que entontece, embriaga e farta como uma bebida forte do Amazonas.”


Notas

1. A Educação em Sergipe através da sua história, Maria Thétis Nunes. Aracaju, Memórias de Sergipe, Vol. I – Educação, coordenação, Gilfrancisco, Correio de Sergipe, 2003.
2. Olímpio Campos, Pe. Antonio Carmelo. Uma biografia de Olímpio Campos, Luis Antonio Barreto (Apresentação). Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 2ª Ed. Revista e anotada, 2005.
3. Inglês de Sousa (textos escolhidos) org. Bella Jozef. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1963.
4. Homossexualismo preto & branco no romance Bom-Crioulo, Gilfrancisco. Ilhéus, Revista Kawé, Ano I, nº1, jan/dez, Universidade Estadual de Santa Cruz, 2002. Aracaju, Jornal da Cidade, 20/21 e 22. Abril de 2003.
5. A Fome, romance de Rodolfo Teófilo, Gilfrancisco. Aracaju, Jornal da Cidade, 5 de janeiro de 2003.
6. Solidão e angustia na alma de Raul Pompéia, Marinalva Alves (pseudônimo de Gilfrancisco). Salvador, A Tarde Cultura, 12 de outubro de 1991.
7. Inglês de Sousa: o Missionário, Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, Revista do Brasil, 3ª fase, IV – 35, maio, 1941.
8. Um romance da vida amazônica, José Veríssimo. Rio de Janeiro, Garnier, 1903. Estudos de Literatura Brasileira, 3ª Série, São Paulo, USP/Ed. Itatiaia, 1977.
9. O Romance Brasileiro, Olívio Montenegro. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1938.





O Liberalismo de Turgueniev


GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com



Propriamente falando, a literatura russa inicia-se no século XIX, em quase todos os seus gêneros vivia a sua fase áurea. Antes desse tempo, existia, unicamente, uma confusão de lendas, que os historiadores definem como essência folclórica: tradições de caráter muito diverso, quase sempre de clima rural. A sociedade e o povos das metrópoles ajustavam-se a um meio, geralmente de tendências religiosas, com predomínio de um evidente sentido personalista, onde o emotivo e o místico prevalecem, nunca, porém, refletindo o que pode ser considerado gênero literário.
Anterior à obra de Ivan Turgueniev, surge com valor essencial, que lhes fixa o seu lugar nas letras universais, alguns romancistas de máxima importância, como a baronesa Krudener (1764-1824), com o seu romance Valéria e Nicolau Gógol (1790-1852), de inconfundível personalidade, autor de Taras Bulba, uma história de cossacos do século XVII; com igual mérito, Turgueniev, cuja obra se insere entre o romantismo e o naturalismo, consegue fazer-se admirado pelo grande público.
Nascido em Orel, Rússia, em 28 de outubro de 1818, Ivan Sergueivêvtch Turgueniev, era filho de um coronel reformado e de uma rica e despótica proprietária de terras. Como Tolstói, foi educado em casa por professores particulares, igualmente a muitos escritores da época. Era comum nas famílias rica e nobre como a sua, ter em casa professores e instrutores, quase sempre franceses ou alemães, para que os filhos aprendessem a falar as línguas estrangeiras.
Tendo ingressado na Universidade de Moscou aos quinze anos de idade, onde permanece apenas um trimestre, transferindo-se em seguida para São Petersburgo como estudante de letras, formando-se ao fim de três anos em 1837, mas estivera também por algum tempo na Universidade de Berlim, regressando a Petersburgo para fazer doutorado, mas não chegou a terminá-lo.
Em Moscou e Petersburgo, veio a freqüentar o meio literário, então dominado por Púshkin, o maior poeta da Rússia, e Gógol, autor que influenciaria muitos escritores e teatrólogos do início do século vinte.
Durante o período em que morou em Berlim, capital da Prússia, Turgueniev entrou em contato com as idéias liberais que estavam se espalhando pela Europa e que iriam operar profundas transformações na estrutura político-econômica do Velho Continente. De volta à Rússia, trabalhou por pouco tempo na administração estatal, o suficiente para que resolvesse se dedicar totalmente à literatura. Esta decisão, aliada do frustrado romance com a irmã do anarquista Bakunin.
Em 1842, manteve uma aventura com a costureira de sua mãe, com quem teve uma filha por ele reconhecida e enviada mais tarde para a França. No ano seguinte, apaixonou-se por Pauline Viardot-Garcia, cantora de ópera, a quem se manteria ligado até o final de sua vida. Essa decisão, piorara a sua já difícil relação com a mãe (Lutovinova), de cuja tirania só se veria livre em 1850, quando ela morreu.
Turgueniev iniciou nas letras russas como poeta romântico, influenciado pela obra de Lermontov, publicando poemas em 1843, uma comédia Imprudência e uma novela curta Andréi Kólosov (1844). Insatisfeito com sua produção, estava resolvido à abandonar a literatura, mas o êxito de Jor e Kalinich lhe devolveu a esperança.
Em 1846, Nekrasov comprou a revista O Contemporâneo, a qual havia sido fundada por Pushkin em São Petersburgo, que seria durante vinte anos a mais importante publicação mensal da Rússia e a principal para o nascimento do movimento realista, na qual foram publicados quase todos os capítulos de Relatos de um caçador, que muito contribuiu para a abolição da escravatura do povo russo. O texto apresenta visões impressionistas da natureza, seu clima de melancolia e, principalmente, sua cálida simpatia para com os servos. O livro constituiu um sucesso e seu autor imediatamente colocado na primeira linha dos escritores russos.
Nesta mesma revista, Turgueniev publicou suas primeiras novelas Rudin; Ninho de Fidalgo e Tolstoi alguns capítulos de Infância, Adolescência e Juventude. O Contemporâneo deixou de circular em 1866 por determinação do czar, depois de ter sofrido um atentado.
No Brasil foram publicados vários livros de Turgueniev, alguns como: O Duelo (tradução H. L. Alves e E. Prado, Clube do Livro, 1973); Pais e Filhos (tradução Ivan Emilianovitch, Abril Cultural, 1ª. ed. 1943), é a amarga história de Bazarov, um herói niilista russo. Intelectual materialista nega o amor e a arte, recusa a religião, combate as tradições, tudo submete à experiência científica e acredita nos benefícios de uma revolução total. Bazarov é um rebelde que não aceita nenhum princípio sem exame. O amor, no entanto, o desarma e o conduz à morte. Pais e Filhos, um dos maiores romances políticos de todos os tempos, acaba de ser reeditado no Brasil pela editora Cosac & Naify, 356 páginas, com tradução de Rubens Figueiredo.
Rudin (tradução Elias Davidovich, Global Editora, 1983), foi publicado em 1855 e descreve a história comovente de um russo que não consegue converter os seus sonhos e conhecimentos em ação. Sua vida será assim, um interminável desajustamento. Rudin seria um gênero desconhecido, condenado ao fracasso pela obscuridade ou falta de sorte? Um ambicioso que não consegue alcançar os seus objetivos? Um parasita que termina por se tornar indesejável nos círculos que freqüenta? Ou um sonhador que passa a vida inteira chocando-se com a realidade? Nesta obra de Turgueniev, ele é o símbolo de todas as criaturas que não logram realizar-se na travessia da vida.
O Relógio e Memu (tradução T. Belinky, Scipione, 1997), são dois contos escritos em 1854 o primeiro e o segundo, dois anos depois. Alexei personagem-narrador de O Relógio relata uma história ocorrida durante sua juventude na Rússia do início do século XIX. Ele e seu primo vêem-se envolvidos em várias confusões após Alexei receber um relógio de prata de seu padrinho. Mumu - Guerássim é um surdo-mudo que trabalha para uma senhora rica, voluntariosa, cheia de caprichos e cercada de servos. Marginalizado por todos, Guerássim o solitário se afeiçoa profundamente a uma cadelinha, Mumu. A tirânica senhora decide tomá-la para si, mas, contrariada, ordena a expulsão de Mumu.
Através de metáforas simples, mas de grande poder simbólico, como o relógio de prata e a cadelinha Mumu, Turgueniev nos revela, nos dois contos reunidos nesse volume, o cotidiano da sociedade russa dos tempos finais do czarismo. O primeiro, transcorre no ambiente urbano e relata como a difusão da cobiça por valores materiais solapou as bases da solidariedade humana. O segundo, envolvendo a transferência forçada de um servo do campo para a cidade, descreve o contraste patético entre o sentido de dignidade e de amor a todas as criaturas de que eram capazes os humildes e a atitude fria e calculista dos poderosos. Para Ivan Turgueniev, era imperativo redimir as injustiças sociais para se restaurar a plenitude da condição humana.
Turgueniev foi um romancista com um excepcional sentido de composição literária, contos, novelas, romances, peças de teatro eram não somente bem acolhidas como ansiosamente esperadas. É considerado um dos maiores ficcionistas russos e ainda um dos grandes mestres da prosa: Ninho de Fidalgo (1859); Em Vésperas (1860); Pais e Filhos (1862); Fumo (1867); Terras Virgens (1877); O Primeiro Amor, O Rei Lear da Estepe, e um poema em prosa Umbral, onde evoca a figura de uma mulher revolucionária, baseado em Vera Zasulich, ativista que havia sido julgada e absorvida em 1878 pelo Tribunal, por ter ferido com um tiro o General Trepov, governador de São Petersburgo, dentre outros, asseguram-lhes um lugar ao lado de Dostoievski e Tolstoi.
O romancista morreu em Bougival, perto de Paris, a 22 de agosto de 1883. Conforme desejava foi enterrado em Petersburgo, junto ao túmulo do amigo Bielinsk a quem tanto admirava. Não resta dúvida que ele foi mais espectador do que doutrinário. Suas novelas escritas durante o reinado de Alexandre II, simplesmente descrevem os aspectos da sociedade de seu tempo, mas apesar de tudo, sua obra constitui um precioso diamante para o conhecimento da história social da Rússia do século XIX.
Estimulado pelo crítico literário V. Bielinsk, Ivan Turgueniev escreveu algumas peças baseado na tradição gogoliana, sendo a mais importante delas, Um mês no campo (1870), que coloca o autor entre os precursores do teatro moderno.
Do ponto de vista estético, sofreu decisiva influência de seu amigo Flaubert; em política, foi um liberal, partidário dos costumes ocidentais. Em toda sua obra refletiram os conflitos da fase de transição social, mostrando a vida dura dos camponeses e as posições ideológicas das camadas sociais superiores.
Turgueniev, não era um revolucionário, mas um defensor da liberdade, um democrata e antiescravista em suas criações, revelou ao ocidente a vida da nobreza provinciana russa, crente em Deus e fiel ao czar, toda sua obra é um relato de repugnância pela vida que dolorosamente viveu com toda tragédia do povo russo.

O pensador Tobias Barreto

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com

"Em política bem como em todas
as ciências morais, duas correntes
opostas arrojam os espíritos sobre plagas
diversas, porque a política, bem como
a filosofia, derivando da experiência
e da razão, conta adeptos que exclusivamente
si abandonam a qualquer destas duas fontes
e nela continuamente afogam
tudo que dali não provém”.

Tobias Barreto



Tobias Barreto é figura de valor histórico, tendo contribuído para difundir na incipiente cultura nacional o complexo de idéias que caracterizou a segunda metade do século XIX europeu, e que preparou o clima espiritual do “Realismo-Naturalista” brasileiro, bem como os moldes secularizantes da nossa Primeira República.
Portador de uma obra fragmentária e incongruente, apesar de ser uma das figuras singulares das nossas letras, Tobias Barreto tinha grande talento e boa memória (orador nativo). Verdadeiro precursor do clima cultural dominante na época do Realismo, deixou extensa obra: Estudos de Filosofia e Crítica (1875); Estudos Alemães (1881); Questões Vigentes de Filosofia e Direito (1888); Vários Escritos (1900), dentre outras, inspirada nos estudiosos germânicos, que divulgou intensamente entre nós.
Tobias Barreto foi uma figura curiosíssima, um polemista de primeira linha, singular em nossa história. A sua insolência, o entusiasmo delirante que despertava na mocidade, as idéias novas que incessantemente introduzia, a sua vaidade imensa, o seu orgulho mestiço, toda essa agitação que sua passagem provocou, sacudiu violentamente o marasmo do mundo imperial e republicano.
Como bem disse Gilberto Amado (1887-1969), ele “nos oferece na harmonia viva da sua obra o tipo específico, o denominador comum das aspirações da consciência política, estética e moral da segunda metade do século XIX”. Não resta dúvida de que Tobias Barreto marcou profundamente nossa história intelectual com sua ação."
A poesia do final da década de 1860 já anunciava o fim do Romantismo; Castro Alves, (1847-1871), Sousândrade (1833-1902) e Tobias Barreto (1839-1889) mantinham-se românticos na forma e na expressão, mas agora os temas estavam voltados para uma realidade político-social.
Como poeta é simultaneamente um sentimental (queixumes melancólicos), trivial e de nenhuma influência no condoreirismo. Um poeta menor, assimilador entusiasta embora não fosse pensador sistemático, produziu a maior parte de sua poesia “medíocre” e romântica, enquanto estudante. A sua deficiência estava na falta de vocação de poeta, logo se abandona, a poesia pela Filosofia, o Direito, a crítica e outros estudos.
Seus poemas Dias e Noites (1854-1881), com juízo crítico de Silvio Romero (1851-1914), foram compostos no período acadêmico, marcado pelas polêmicas com Castro Alves. Este duelo poético em torno de duas atrizes teatrais do tempo, Adelaide do Amaral, sua predileta, e Eugênia Câmara (1837-1879), do seu adversário, é considerado rivalidade de estudantes, sem maior significação.
Na década de 70 surge a chamada Escola de Recife, com Tobias Barreto, Silvio Romero e outros, cujas idéias se aproximam do pensamento europeu, o positivismo, o evolucionismo e, principalmente, a filosofia alemã são os inspiradores do Realismo, encontrando ressonância no conturbado momento histórico vivido pelo Brasil, sob o signo do abolicionismo, do ideal republicano e da crise da Monarquia.
Tobias Barreto de Meneses nasceu em 7 de junho de 1839, em Campos do Rio Real (SE), hoje cidade que leva o seu nome. Mestiço, filho do escrivão e então alferes Pedro Barreto de Meneses e dona Emerenciana Maria de Meneses. Seus estudos elementares foram iniciados com professores particulares em sua província natal e já aos 15 anos de idade era professor de latim em Maruim e Itabaiana.
Em março de 1861, embarca para Salvador (BA), permanecendo até dezembro do mesmo ano, cursando algumas matérias preparatórias, inclusive filosofia com o frei Itaparica. Influenciado pela leitura de obras de Vitor Hugo (1802-1885), iniciou a carreira literária.
Acometido de varíola em 1863, não consegue ingressar na Faculdade de Direito do Recife, o que só vem a ocorrer um ano depois. Diplomado em 1869 (foi obrigado a repetir o terceiro ano do curso jurídico, por motivo de faltas em 1866), pouco depois fundou seu próprio colégio, aí lecionando várias matérias.
De 1871 a 1881, exerceu a advocacia e o jornalismo em Escada (PE), onde montou uma tipografia, fundou e dirigiu uma dezena de efêmeros periódicos liberais, vibrantes de idéias progressistas, inclusive o Deutscher Tämpfer (O Lutador Alemão) em língua alemã.
Nesta cidade ocupou os cargos públicos de Curador dos Órfãos, Suplente de juiz Municipal e de Deputado provincial por Pernambuco, na legislatura de (1879-1880). Sua permanência no município foi uma etapa muito importante em sua vida; a maturidade cultural, estudando e aprofundando-se em quase todas as ciências humanas, a começar pela língua e literatura germânica.
Em fins de 1881, envolvido em discórdias políticas e questões familiares, resolve transferir-se para Recife. Na capital pernambucana obtém nomeação para lente substituto na Faculdade de Direito, conquistando em 1882 a cátedra de Prática do Processo, onde leciona até o fim de sua existência, revolucionando o ensino jurídico, como divulgador das idéias mais avançadas da época e, notadamente, como mentor intelectual de uma geração de consagrados nomes, dentre outros, Martins Júnior, Artur Orlando (1858-1916) e Clóvis Bevilaqua (1859-1944).
Voltado para o ensino e para o jornalismo, Tobias Barreto sempre em luta com seu temperamento, inquieto, em permanente ebulição intelectual, insatisfeito e incompreendido, soube como nenhum outro analisar a vida social e política do segundo reinado.
Advogado, mas exercendo também outras atividades para sobreviver" disso, morreu em 26 de junho de 1889 no Recife (PE) na miséria e no abandono, deixando discípulos como Graça Aranha (1868-1931) e especialmente Silvio Romero, quem mais reivindicou a primazia para Tobias Barreto da renovação das idéias no Brasil, no último quartel do século passado, através da chamada Escola do Recife.
Muito embora Tobias Barreto tenha morrido em 1889, este ocorrido fora veiculado dois anos antes através da imprensa sergipana, primeiramente pelo jornal O Sergipano, órgão conservador que noticiou a “morte” de Tobias Barreto (10 de maio). Baseando-se nesta informação a União Liberal, de Propriá, em edição de 13 de maio, publica em sua primeira página nota sobre seu falecimento em 10 do corrente na cidade de Recife. Sete dias depois (22), O Laranjeirense veicula na última página uma notícia de “última hora” sobre a morte de Tobias. “Acabamos de ser profundamente abalados diante da tétrica notícia de que é morto o genial escritor sergipano, Tobias Barreto. O eminente pensador, o altíloco filósofo, o adorado mestre, o espírito mais pensante do país no presente, cedeu, em o dia 10 do corrente, como tantos outros espíritos valentes, à fatal lei da transformação”.
Desfeito o mal entendido, no número seguinte (uma semana depois), O Laranjeirense publica: “Felizmente para o país, que vê no profundo mestre a manifestação mais possante do verdadeiro talento, temos a viva satisfação de declarar que é destituído de fundamento semelhante sucesso, que nos foi transmitido pelo O Sergipano e União Liberal, órgãos das duas políticas do quarto distrito da província”.
Eclético durante algum tempo, tornou-se depois crítico do ecletismo, assim como do positivismo, escrevendo uma obra aberta ao diálogo com as ciências; reafirmou a metafísica e foi um precursor do culturalismo (cultura e personalidade), escola norte-americana de antropologia que tende a considerar essencial a especificidade da “cultura”, encarada como hábito do grupo social, por oposição à natureza.
Somente a partir da publicação das Obras Completas de Tobias Barreto, Edição Comemorativa, organização de Antônio Paim e Paulo Mercadante, direção geral de Luiz Antônio Barreto, com a colaboração de Jackson da Silva Lima, INL/Editora Record, Rio de Janeiro, 1989/1990, 10 volumes: Estudos de Filosofia: Estudos de Direito I, II e III; Crítica de Religião; Crítica Política e Social; Monografia em Alemão; Dias e Noites; Crítica de Literatura e Arte e Estudos Alemães é que poderão agora, as novas gerações de estudiosos da cultura brasileira, ter em mãos a obra fascinante de Tobias Barreto, o maior agitador de idéias filosóficas que já aconteceu em nossa terra.

Centenário

A primeira matéria sobre o centenário de Tobias Barreto, publicada no Diário Oficial do Estado, saiu em 3 de junho de 1939 e tratava do programa das solenidades com que Sergipe comemoraria o Centenário de nascimento de Tobias Barreto.
As 19 h teve início através do orador pelo IHGS, o professor Mário Cabral, as 20,30 h palestra proferida por Ademar Brito. No dia seguinte a partir das 15 h no Campo Adolfo Rollemberg, demonstração de Educação física pelos aleunos da Escola Normal e dos Grupos Escolares da capital, tendo como orador dr. Gentil Tavares. As 19 h ao microfone do DPDE (PYD 2), falaram professor José Barreto Fontes, pela Escola Conselheiro Orlando e a professora Nadir Galvão Leite, pelo Colégio Jackson de Figueiredo.
No dia 5 às 17 h reabertura da Exposição Permanente do Governo Eronides de Carvalho, no DPDE, as 19 h ao microfone do PYD 2, pela academia Sergipana de Letras, falou o jornalista Exupero Monteiro, as 20,30 h, sessão solene da Congregação do Ateneu Sergipense, tendo como orador o professor Virginio Santana. Na terça feira dia 6, às 10 h, Batimento da primeira pedra do pavilhão da Escola Infantil anexa à Escola Nornal e inauguração do retrato do Interventou Eronides de Carvalho no Gabinete da Diretoria Geral do Departamento de Educação. As 19 h vários oradores falaram através do PYD 2: professor Rinaldo de Oliveira, ginasianos Carmen Sobral e Luiz Barreto pelo corpo discente do Ateneu Sergipense, as 20,30 h Sessão solene da Academia de Letras no IHGS, sendo orador, Carvalho Neto.
Na manhã do dia 7, as 10 h no salão nobre da Biblioteca Pública, sessão solene do Instituto dos Advogados, sendo orador, Gonçalo Leite, ao meio dia, sessão no Rótary Club, discurso proferido por Leite Neto, as 14 h, no Tribunal de Apelação, realizou-se Sessão extraordinária com palestra do desembargador Gervásio Prata. As 16 h, desfile cívico de todos os estabelecimentos de ensino da capital à Estátua de Tobias Barreto, as 19 h a PYD 2, pronunciamente de Florentino Teles de Menezes pelo DPDE, às 20 h encerramento das festividades com uma sessão solene no IHGS, com audição do orfeão artístico da Escola Normal, tendo como orador o desembargador Hynaldo Cardoso.
Na cidade de Campos, terra natal de Tobias Barreto, às 10 h, batimento da pedra fundamental do obelisco em honra a Tobias Barreto, as 16h, romaria à casa em que nasceu Tobias Barreto e as 20 h, sessão cívica na Prefeitura Municipal.
A Semana de Tobias Barreto no IHGS encontrou no escritor e jornalista Mário Cabral um delegado à altura de representá-lo na Semana "Tobias Barreto":

"O dr. Mário Cabral estudou a poesia de Tobias Barreto na sua feição satírica. Fê-lo com a autoridade que lhe empresta uma aprimorada cultura tão sinceramente apreciada através das suas aulas magníficas na Escola Normal "Rui Barbosa" e da sua constante colaboração na imprensa sergipana.
Em verdade, na poesia satírica de Tobias Barreto há muito o que se admirar porque ele foi sobretudo um homem original pelo vigor da idéia que se traduzia na violência da expressão.
Razão tem o orador quando afirma que a sátira é a cristalização da revolta. Este fenômeno se observa muito em Tobias Barreto, na sua instintiva atração pelas incompatibilidades pessoais, segundo M. Paulo Filho, Ademais Tobias não sabia viver, na acepção utilitarista e rendosa do termo.
Tobias Barreto foi poeta satírico por um imperativo étnico-social obedecendo mesmo às injunções de um meio hostil, onde as suas idéias tenham o sabor de uma nova era que teria de emergir, como efetivamente emergiu, daquele caos intelectual. Bendita inconoclastia de Tobias, fazendo ruirem falsos ídolos para legar-nos um virtuoso patrimônio constante de dez obras, que valem como um monumento imperecível erguido em honra do Brasil mental." (Diário Oficial do Estado, 6 de junho, 1939)
As comemorações do 1. centenário de nascimento de Tobias Barreto, contou com o jovem professor José Barreto Fontes, que inspirado, mostrou num breve e fervoroso discurso, a importância do pensamento tobiano aos jovens:
"Empregando um simbolismo que torna ainda maior, no conceito da juventude, o homem culto e fiel à sua cultura que foi Tobias, esboça com entusiasmo o perfil moral do insigne homenageado.
Lembra e louva o romantismo que não se dissipou na crueza das campanhas e das competições acesas mais pela inveja pretenciosa de inimigos a quem não poupava e que não lhe perdoavam a força dos argumentos.
O mesmo que se dá com outros que falaram na "Semana" corrente, o jovem preceptor denota o interesse por que a vida de Tobias nos sirva, eloquentemente, de silenciosa admoestação para não caírmos na dupla franqueza de enveredar pela estrada batida que palmilham as maiores ignavas, negando e escondendo, ao mesmo tempo, as idéias que para tranquilidade da consciência intelectual, se acendem nossos cerebros, como a querer por a lâmpada sob o alqueire.
Fossem os mais elevados os conhecimentos e o talento de Tobias, mas lhe faltasse a "rigidez de caráter" como diz o orador, e o sentido das presentes comemorações muito teria a perder, apesar de tanto que se diz nada ter a ver o talento com a conduta. Tobias, se ensina com a sua obra, encoraja com a sua ação, preferindo sofrer as pedradas da inimizade desleal afugentada pelo seu valor, a fazer causa comum com a malta de detratores desejosos de renome." (Diário Oficial do Estado, 6 de junho, 1939)
O Departamento de Propaganda e Divulgação do Estado - DPDE, gerou várias matérias sobre a Semana de Tobias Barreto, para divulgação no Diário Oficial do Estado:

"A face do talento de Tobias Barreto, que mais difícil se mostrava para um estudo , o qual, todavia, não podia faltar para ser completa a "Semana" preparada em sua honra, na comemoração do 1.Centenário de seu nascimento, encontrou na cultura e sensibilidade do jornalista Exupero Monteiro, também poeta, um intréprete capaz.
Não foi breve a sua alocução transmitida ante-ontem pelo rádio. O seu autor estendeu-se por várias laudas compactas, em que a fluência e graça do estilo se casam a força dos conceitos que emite, das imagens que emprega, dos confrontos que faz.
Animando-se a falar exclusivamente da poesia de Tobias, surpreendeu talvez a alguns que teimam em não apreciar e até a não reconhecer o seu valor e expressividade.
Inteligência maleavel, criando sem se deprimir nem se exaltar motivos serenos com que se afirmou um dos poetas mais interessantes do Estado, cujo estro ora se manifesta em felizes estrofes matutas, ora em belos sonetos líricos, o trabalho do sr. Exupero Monteiro foi uma contribuição primeiro inesperada, depois preciosa, para que também nessa parte se prestasse a Tobias, o que foi feito magistralmente, perfeita homenagem aos lavores magníficos de seu pensamento amigo da sabedoria e também da beleza." (Diário Oficial do Estado, 7 de junho, 1939)

***

"Enquanto certos indivíduos, quais árvores de poderosa envergadura, transpõem, garlhadamente, as lindes perimetrais da existência humana, vivendo por séculos infinitos, outros há que não vivem sequer um átomo de segundo.
Esquilo e Homero, Cícero e Virgilio, há mais de mil anos atufados além dos humbrais das sombras, na feliz expressão de Martins de Azevedo, ainda, hoje, existem, como entidades palpáveis, perpetuados em comédias, tragédias, orações públicas e estrófes bucólicas. Como eles, Tobias Barreto, integrado há cem anos nas legiões do além, continua presente a nós, que, a cada hora, lhe admiramos mais a obra imperecível e eterna.
Tobias Barreto é, hoje, um símbolo para o Brasil, que vem de com excepcionais homenagens desagravá-lo de quantas injúrias lhe atiraram inimigos rancorosos e deselegantes. Tobias Barreto vive, hoje, na comprfeensão do Brasil, inteiramente reparado pelas gerações hodiernas dos males que lhe fizeram aqueles e eram tantos que não tiveram vistas suficientes para contemplar o novo sol que, nascia no horizonte nacional projetando luzes em todos os setores dos conhecimentos humanos." (Diária Oficial do Estado, 10 de junho , 1939)

***
"Comemora-se hoje o dia de Tobias Barreto. É o sétimo dia da semana dedicada ao grande sergipano.
A homenagem que lhe rende o seu Estado, a começar do dia 1., culmina, hoje, com as excepcionais festas públicas e solenidades culturais.
O Govêrno,tendo a elevada compreensão dessa homenagem, prestada a quem, há tanto desaparecido, continua a viver na veneração das gerações que se sucedem, decretou feriado o dia 7 de junho de 1939. Fazendo-se ouvirem figuras as mais representativas de nosso mundo intelectual, foi atingido o objetivo supremo de dar-se o máximo abrilhantamento a tais comemorações, inéditas em nosso meio.
A juventude escolar contribuiu muito para o êxito alcançado. Desde a guarda de honra às obras completas de Tobias Barreto, à grande parada infantil do Colégio do seu nome; desde as pequenas vozes ao rádio, ao magnífico concurso orfeônico - muito se deveu à gente das nossas escolas primárias e secundárias.
Deveu-se a ela esse ar de novidade diariamente notado durante a "Semana", tirando o solenismo protocolar e contrafeito que emana de certas cerimônias coomemorativas." (Diário Oficial do Estado, 10 de junho, 1939).
A Negra Poesia de Solano Trindade


- um ser humano de grande carisma e visão, para quem a arte representava parte
essencial da vida. Sua obra estética e vida se unificaram como expressão do amor à sua gente e à sua arte -


GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luis de França e membro de Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


No início dos anos 70 (1973), o Brasil conheceu um grupo vocal diferente “Secos & Molhados”. O visual era colorido e espalhafatoso. As músicas falavam de lobisomem e de Hiroshima. O conjunto, liderado por Ney Matogrosso alcançou o sucesso com o LP de estréia lançado pela Continental e entre as faixas estava “Mulher Barriguda”, poema de Solano, musicado por um dos integrantes, João Ricardo. No dia 5 de agosto, a TV Globo exibia pela primeira vez o Fantástico, o show da vida, onde lançaram o grupo, de visual andrógino, a maquiagem agressiva, a expressão sensual do corpo e a surpreendente voz de contralto de Ney Matogrosso projetaram Os Secos & Molhados como a grande novidade pop do começo da década. No ano seguinte, LP gravado ao vivo no Maracanãzinho pela Continental, nova regravação de Mulher Barriguda. Desfeito o grupo em 1974 após lançamento do seu segundo LP em estúdio, Ney Matogrosso segue carreira solo e grava o LP Seu Tipo em 1979 e inclui outro poema de Solano Trindade “Tem Gente com Fome”, musicado por João Ricardo:


Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.

Estação de Caxias
de novo a correr
de novo a dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar.

Só nas estações
quando vai parando
começa a dizer
tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer.

Negro, pobre e democrata, homem que tinha nas entranhas uma vontade indomável de valorizar o negro brasileiro, através da autoafirmação consciente, sempre carregou na pele negra as motivações de sua luta. Expressou este sentimento em poemas do mais alto nível poético, como"Tem gente com Fome", onde cantou os sofrimentos das populações suburbanas do Rio de Janeiro e seus irmãos negros.

Poeta, cineasta, pintor, teatrólogo e sobretudo, militante cultural Francisco Solano Trindade, nasceu em 24 de julho de 1908 no Recife, no bairro de São José, filho de Manuel Abílio, sapateiro e da quituteira Merença (Emerenciana), fez estudos no Liceu de Artes e Ofício e depois o curso propedêutico da Academia de Comércio de Recife, foi operário e funcionário público federal, no início de sua carreira (Serviço Nacional de Recrutamente. Sua carreira como militante inicia-se, de fato, a partir de 1930, quando começa a compor poemas afro-brasileiros e, já integrado nesta corrente, participara em 1934 do I e II Congresso Afro-Brasileiro, no Recife e Salvador. Em 1936, Solano funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro, que tinha o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Em 10 de agosto, nasce no Recife sua filha Raquel Trindade.

Sem crença religiosa até conhecer sua primeira esposa, Margarida, levou-o a Igreja Presbiteriana, chegando ao posto de diácono, mas abidicou da vida cristã ao perceber que a instituição religiosa não se preocupava com as dificuldades enfrentadas pelos negros, nem com os problemas sociais. Residindo no Rio de Janeiro em meados da década de 40, filia-se ao Partido Comunista, sendo preso por duas vezes pelos militares do Estado Novo. No final da vida, desligou-se do Partido, mas continuou socialista.

Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte, depois chega ao Rio Grande do Sul, fixando-se por um tempo em Pelotas, onde funda com o poeta Balduino de Oliveira um grupo de arte popular. Esta foi sua primeira tentativa de criar um teatro do povo, o que não se concretizou devida à enchente de 1941, que carregou todo o material. Retornando a Recife seguindo depois para o Rio de Janeiro, passou a discutir e a conversar com jovens poetas e intelectuais, artista de teatro, políticos e jornalistas, sobre seus projetos. Em 1944 publica um pequeno volume "Poemas d uma vida simples", onde trazia uma poesia despretenciosa, de protesto resignado e de denúncia das injustiças e dos preconceitos raciais e sociais, onde o poeta não se cansa, utiliza várias maneiras de afirmar a sua posição de negro:


Sou Negro

meus avós fora queimados
pelo Sol da África
minha alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongês, agogôs
(...)
Na minha alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...


Um ano depois, Solano funda o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, com o escritor sergipano Raimundo Souza Dantas, Aladir Custódio, Abdias Nascimentos e Corsino de Brito. Em 1954 encontra-se em São Paulo, criando na cidade de Embu, um pólo de cultura e tradições afro-americanas e na capital paulista funda com o escritor e jornalista baiano, Edison Carneiro o Teatro Popular Brasileiro - TPB, onde desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo, fazia uma leitura séria de danças como maracatu e bumba-meu-boi. Em 1955 viaja para a Europa com o TPB. Em 1958 edita mais um livro "Seis Tempos de Poesia", um ano depois, enquanto a companhia "Grupo dos Novos" estava no exterior, Solano Trindade desligou-se por discordar da linha que estava sendo assumida pelo grupo, núcleo idealizado por ele.

Em 1961, publica "Cantares ao meu povo", reunião de poemas anteriores. Em 1974, no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro, morria o poeta negro Solano Trindade. Um ano depois, a escritora e artista plástica Raquel Trindade, em homenagem ao seu pai, cria no Embu das Artes, o Teatro Popular Solano Trindade. Em 1965 participa do elenco do filme A Hora e a vez de Augusto Matraga, logametragem baseado no conto homônimo de João Guimarães Rosa, dirigido por Roberto Santos. No ano seguinte trabalha no filme O Santo Milagroso, dirigido por Carlos Coimbra.

Em 1998 a Revista da Literatura Brasileira - LB, n.12, editada pelo saudoso poeta e contista sergipano, Aluysio Mendonça Sampaio prestou homenagem ao poeta negro e popular Solano Trindade, com um texto de Clovis Moura "Revisitando a memória de Solano Trindade".Sua morte não teve repercussão na imprensa. Registraria aqui, o texto de Clóvis Moura publicado no Jornal Debates, de São Paulo. Repetindo as palavras de Clóvis ditas em 1974, o seu nome, a sua obra e o seu comportamento humano estão praticamente esquecidos. Solano Trindade faleceu aos 66 anos, no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974, para onde voltou já doente. Foi sepultado no Cemitério de Pechincha, em Jacarepaguá.

Em 2008 passou em branco o Centenário do poeta ativista Solano Trindade a grande mídia ignoraram deliberadamente este fato, deixando de homenagear um combatente das elites e governos opressores. Algumas homenagem esparsas e dois livros publicados pela Editora Nova Alexandria, Poemas antológicos de Solano Trindade e Tem gente com fome, e nada mais.
O Poeta Bernardo Vieira Ravasco

GILFRANCISCO: Jornalista, pesquisador, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


- primeiro poeta natural do Brasil a ter acesso a uma antologia –



O termo barroco abrange em literatura uma série de denominações. Em Portugal e Espanha, seiscentismo, conceptismo (ou conceitismo), cultismo (ou culteranismo); na Itália, marinismo e seiscentismo; na França, preciosismo; na Inglaterra, eufuísmo; e na Alemanha, silesianismo. São características do Barroco literário: linguagem pomposa, imagens sutis e freqüentemente obscuras; musicalidade, descritivismo, exploração das possibilidades fonéticas da língua, objetivando salientar os contrastes conceituais. Utilização do paradoxo, criando um estilo rebuscado, onde predominam os jogos de palavras, oposições e idéias abstratas; procura de imagens e sugestões fora da realidade; virtuosismo; amplo uso de alegorias, hipérboles, paralelismos, repetições, anáforas e antíteses; exacerbação dos sentimentos; gosto do requinte; estilo sentencioso e preocupação moralizante; ritmo sincopado e metáforas sinuosas, espiraladas, ligando imagens complexas, tais como as volutas que caracterizam o estilo barroco na arquitetura.
Antonio Vieira combateu com veemência feroz, no Sermão da Sexagéssima( ou do Evangelho), pregado na Capela Real no ano de 1665, a oratória cultista dos dominicanos ao afirmar:

“O estilo pode ser muito claro e muito alto. Tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender (aprender) os que sabem... há de tomar o pregador uma só matéria; há de definí-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga; há de prova-la com a Escritura, há de declara-la com a razão, há de confirma-la com o exemplo; há de amplifica-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias com as conveniências, que se hão de seguir, com os inconvenientes que se hão de evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar, com toda a força da eloqüência, os argumentos contrários; e, depois disto, há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar”.

Talvez aqui esteja o segredo do seu brilho, a chave de seu prestígio, a razão da sua perenidade. Os principais representantes do barroco são Gôngora, Quevedo, Cervantes, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Tirso de Molina (Espanha); Tasso, Marino, Guarini, Della Porta (Itália); Montaigne, Pascal, Cornelle, Racine, Boileau (França); Gryphius, Opitz (Alemanha); Sóror Mariana de La Cruz, Hojeda, Balbuena, Caviedas (América Espanhola). Em Portugal, o barroco desenvolveu-se entre 1580 e 1680, cobrindo, portanto todo o período em que o país esteve sob a dominação espanhola (1580-1640). Fortemente marcado pelo cultismo e conceptismo teve como principais representantes: Rodrigues Lobo; Manuel de Melo; Tomás de Noronha; Sóror Violante do Céu; Frei Luís de Sousa; Padre Bernandes; Padre Bartolomeu do Quental e Frei Antonio das Chagas. No Brasil, o barroco manifestou-se na prosa laudatória, na poesia e na oratória sacra e teve como principais representantes: Padre Antonio Vieira; Bernardo Vieira Ravasco; Eusébio de Mattos; Gregório de Mattos; Manuel Botelho de Oliveira; Sebastião da Rocha Pita, entre outros.
É neste ambiente conflituoso, que nasce Bernardo Vieira Ravasco em 1617, batizado em 3 de junho de 1619, sendo filho de Cristóvão Vieira Ravasco, fidalgo da Casa de sua Majestade, descendente da nobre família dos Ravascos e D. Maria de Azevedo, faleceu na Bahia em 20 de julho de 1697, aos oitenta anos, dois dias depois da morte do irmão mais velho, Padre Antonio Vieira, pois encontrava-se há muito enfermo e por isso não foi informado da morte do mesmo.
Bernardo Ravasco foi sepultado na igreja do Convento do Carmo, por debaixo do altar da capela do Santíssimo Sacramento. “Foi dada esta sepultura n’este lugar pela entrega que fez de 50 arrobas de açúcar branco, os quais seriam tiradas do engenho de Cotegipe anualmente do primeiro e melhor, que se tirasse do dito engenho, a qual pensão é eterna e passa a quem possui o dito engenho; para ornato da dita capela, por ser esse o ajuste que se fez e não houve clareza alguma senão bocalmente”. (1) As 50 arrobas de açúcar foram sempre cobradas pelos padres até 1856 ou 1857; o proprietário do engenho excusou-se então a esse pagamento eterno.
Por ocasião do ataque dos holandeses à cidade natal em 1638, destacou-se ao defendê-la, como capitão de infantaria, bem como nos combates da Ilha de Itaparica, contra as forças do general Schkoppe. Passou a exercer o cargo de secretário de Estado e da Guerra do Brasil e feito por el-Rei D. João IV, alcaide-mor da cidade da Assunção do Cabo Frio. (2) Em 1682 teve desavenças com o governador Antonio de Sousa Meneses (1682-1684), e fora preso. Meneses, impulsivo, propenso à violência foi empossado a 23 de maio de 1682, e chamavam-lhe braço de pirata, pela que substituía, pois havia perdido (o direito), 42 anos antes a bordo da nau do conde da Torre, lutando com os flamengos na Paraíba.
Sobre ele escreveu Gregório de Mattos um longo poema satírico, Descrição, Entrada e Procedimento do Governador Antonio de Sousa de Meneses, o Braço de Prata.


Quando desembarcaste da fragata,
meu Dom Braço de Prata,
cuidei que a esta cidade tonta, e fátua.
mandava a Inquisição alguma estátua,
vendo tão espremida salvajola
visão de palha sobre um mariola.

O rosto de azarcão afogueado,
e em partes mal untado,
tão cheio o corpanzil de godolhões
que o julguei por um saco de melões;
vi-te o braço pendente da garganta,
e nunca prata vi com liga tanta.

.......................................................

Olhos cagões, que cagam sempre à porta,
me tem esta alma torta,
principalmente vendo-lhe as vidraças
no grosseiro caixilho das couraças:
cangalhas que formaram luminosas
sobre arcos de pipa duas ventosas.


Bernardo, embora não tenha sido casado teve com D. Felipa Cavalcante Albuquerque, filhos bastardos: Bernardina Ravasco, Cristóvão Vieira Ravasco (capitão de infantaria nomeado a 8 de junho de 1670, pelo governador Alexandre de Sousa Freire, morreu em combate) e Gonçalo Ravasco Cavalcante de Albuquerque, casado por duas vezes, poeta, que foi soldado e capitão de infantaria, não conseguiu habilitar-se à Ordem de Cristo por lhe faltarem as naturalidades dos avós, além da suspeita da avó moura.
Gonçalo esteve acusado no envolvimento da morte do alcaide-mor da cidade da Bahia, Francisco Teles de Meneses, ocorrido na manhã de 4 de junho de 1683. Este mesmo Gonçalo Ravasco, amigo do poeta Gregório de Mattos, o denunciou, quando este se encontrava refugiado na Ilha de Madre Deus (BA), enviando-lhe uma carta marcando um encontro. No local acertado, o poeta Gregório deparou-se com os guardas do governador João de Lencastre (1694-1702), que o prenderam.
Bernardo Vieira Ravasco deixou numerosa obra poética, em português e castelhano: A Fênix Renascida, ou Obras Poéticas Dos Melhores Engenhos Portugueses (3). Estão presentes nesta antologia vários poetas brasileiros: Bartolomeu Lourenço de Gusmão (um soneto, Vol. I, p. 394); Bernardo Vieira Ravasco, A hum papagayo de Palácio, que fallava muito, Vol. III, p. 254. Esse soneto escrito em espanhol já tinha sido impresso por Babosa Machado, Vol. I, p. 539, no artigo onde dá a biografia desse autor: “teve natural gênio para a poesia que praticou com tanta felicidade que os seus versos conhecidos pela elegância do metro, e fineza dos pensamentos, sem que tivessem o seu nome”. (4)
A segunda poesia, três décimas intitulada: À Senhora D. Isabel Princeza de Portugal havendo morto em Salvaterra hum Javali com hum tiro, aparece aqui impressa pela primeira vez: Glosa a um Soneto, Vol. V. p. 271-275, republicado no Parnaso Brasileiro, de Pereira da Silva. Eccos, que o clarim da fama dá em Postilhão de Apollo, José Ângelo de Morais. Lisboa, Oficina de Francisco Borges de Souza, Ano de 1761. Sob o ponto de vista brasileiro, esta coletânea é muito importante, pois traz poemas de Eusébio de Mattos, Retrato de uma dama, Vol. I. p. 252; Bernardo Ravasco, Oitavas pelos mesmos consoantes aplicando-as a hum cadável, Vol. I. p. 256 e Bertalomeu de Gusmão, Ao doutor Fillipe Maciel, discorrendo sobre jurisprudência, Vol. II. P. 241; Discurso político sobre a naturalidade da Coroa de Portugal nas guerras presentes das Coroas da Europa, e sobre os donos que da neutralidade podem resultar a essa Coroa e como se devem e podem obviar, 1692; Saudades de Lídia e Armido (manuscrito); Descrição Topográfica, civil e militar do estado do Brasil, nunca foi encontrado.


Notas

Catálogo Genealógico das principais famílias, Antonio de Santa Maria Joboatão. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vol. LII, p. 497, 1889.

Bernardo Vieira Ravasco foi nomeado a 7 de março de 1650 por D. João, e exerceu o cargo até sua morte. Sendo o mesmo cargo ocupado pelo filho Gonçalo Ravasco, que desempenhou com grande capacidade.

3. Fênix Renascida, ou Obras Poéticas Dos Melhores Engenhos Portugueses,
Dedicadas Ao Excellentíssimo Senhor D. Francisco Xavier de Menezes Conde
da Ericeira do Conselho de Sua Majestade, & c. Publica-o Mathias Pereira da
Silva, V. Tomo. Famosa antologia da poesia barroca portuguesa foi publicada
por Mathias em cinco volumes: 1711, 1717, 1718, 1721 e 1728.


4. Biblioteca Lusitana, Diogo Barbosa Machado, 4 Vols, 2ª ed. Lisboa: S.C.P.,
1930-1935, Vol. I, p. 428, 1ª col.






O historiador Sílvio Romero

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmail.com


“É preciso deixar de lado o método exterior de julgar os produtos literários por meio de convenções retóricas. É preciso procurar em toda a vida nacional o elemento popular, vivo, constante, criador. É preciso procura-lo na história política e social e na história literária e das artes”.
Silvio Romero


Celebrar o sesquicentenário de nascimento do pensador, crítico e ensaísta sergipano Sílvio Romero (1851-1914), que ocorre em 2001, significa reverenciar a eminente figura da nossa história. Não somente pela notável contribuição no campo da historiografia literária que, a partir dele, passou a utilizar novos métodos de análise crítica com base, sobretudo, no levantamento sociológico, mas, igualmente pelas idéias ousadas para o seu tempo, que se anteciparam às dos seus companheiros de geração e se transformaram em objeto de estudo durante muitas décadas.
Como historiador de nossa literatura, Sílvio Romero é festejado entre os de primeira linha, bem como se situa entre os mais credenciados pioneiros dos estudos sociais no Brasil. É, ele à consciência ativa, e vigilante da Escola do Recife, que não cessaria de sustentar em um sem-número de artigos.
De espírito combativo, foi um panfletário vigoroso que se notabilizou pela seriedade e inconformismo ante as rotinas. Um polemista de estilo fluente, passional, irônico, era um homem impulsivo, que se indispôs com vários poetas, prosadores e críticos.
Nascido a 21 de abril de 1851, na vila sertaneja de Lagarto, da então província de Sergipe, Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero, filho de André Ramos Romero e de dona Maria Joaquina da Silveira, foi pensador, crítico, poeta, ensaísta e o primeiro historiador sistemático da literatura brasileira.
A sua infância foi no engenho da família, até os cinco anos. Desta idade até os 11 anos, reside em Lagarto, onde fez os primeiros estudos numa escola pública, terminando-os um ano depois, quando vai estudar os preparatórios na Corte, no Atheneu Fluminense, como aluno interno.
Aos 17 anos presta os exames perante a banca da Instrução Pública e começa a estudar na Faculdade de Direito do Recife (1868-1873), onde teve como contemporâneos ou colegas de curso, Celso de Magalhães, Domingos Olímpio, Joaquim Nabuco, Araripe Júnior, Luís Guimarães Júnior e Tobias Barreto (1839-1889), ao lado do qual expressou a ânsia de renovação que acompanhou a ascensão do Positivismo.
O amigo e conterrâneo começava, então, a divulgar as doutrinas positivistas e evolucionistas que iriam formar o ideário do Realismo. Logo aderiu às novas idéias, passando a nutrir pelo chefe da Escola do Recife admiração quase idolátrica - conseqüência imediata dessa adesão são os artigos de crítica à poesia romântica escritos, por volta de 1873, e que, mais tarde, reuniria em A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna (1880).
Membro da chamada Escola do Recife, pretendeu com sua obra uma superação do ecletismo e do positivismo: inspirando-se sobretudo em Emanuel Kant (1724-1804) e no evolucionismo spenceriano, deu origem a um culturismo sociológico.
Bacharel em 1873, Sílvio Romero retornou a Sergipe, sendo nomeado promotor público de Estância. Ao se lançar na política, a duras penas, chegou a ser deputado provincial (1874) e deputado federal (1898).
Em 1876 passa pelo Rio de Janeiro, com destino a Parati, onde foi nomeado juiz municipal. Três anos depois, ao mudar definitivamente para Corte, obtém a cátedra de Filosofia do Colégio Pedro II, através da defesa da tese Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos (1880).
No Rio de Janeiro, viveria do magistério - ensinando também na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais - e da pena, inclusive, a sua vasta e importante obra crítica, que o caracterizou como árdego polemista, cioso de reivindicar a prioridade da Escola do Recife na renovação da intelectualidade brasileira e a superioridade de Tobias Barreto sobre seus contemporâneos, notadamente Castro Alves (1847-1871) e Machado de Assis (1839-1908).
Em 1901, Sílvio Romero viaja à Europa e, por indicação da Universidade de Coimbra, é agraciado pelo rei Dom Carlos I, de Portugal, com a Ordem de São Tiago. Ainda, passa a ser sócio da Academia de Ciências de Lisboa e do Instituto de Coimbra, em 1902.
Em 1906, recebeu o autor de Os Sertões, Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras. Adoentado - foi jubilado do Colégio Pedro II em 1910 - tenta uma estação de cura em Juiz de Fora, Minas Gerais. De volta ao Rio de Janeiro, morre o escritor no dia 18 de julho de 1914.
Sua obra participa do esforço de revisão ideológica de que brotou o pensamento moderno do Brasil - pode-se dizer, sem medo, que lançou bases mais sólidas para a compreensão da nossa literatura: Poesia Contemporânea (1869), A Filosofia no Brasil (1878), Cantos do Fim do Século (1878), Introdução à História da Literatura Brasileira (1882), Cantos Populares do Brasil (1883), Ensaios de Crítica Parlamentar (1883), Últimos Arpejos (1883), Valentim Magalhães (1884), Estudos de Literatura Contemporânea (1885), Etnografia Brasileira (1888), Luís Murat (1893), Doutrina Contra Doutrina - O Evolucionismo e o Positivismo no Brasil (1894), Ensaios de Filosofia do Direito (1895), Machado de Assis (1897), Ensaios de Sociologia e Literatura Brasileira (1901), Evolução do Lirismo Brasileiro (1905), América Latina (1906), Minhas Contradições (1914), dentre outros.
Foi notável a sua contribuição no campo da historiografia literária que, a partir dele, passou a utilizar novos métodos de análise crítica com base, sobretudo, no levantamento sociológico. Sílvio Romero foi o primeiro grande crítico e fundador da crítica no Brasil.
A História da Literatura Brasileira é a sua principal demonstração de amor à cultura brasileira, publicada pela primeira vez em dois volumes - Rio de Janeiro, B. L. Garnier, Livreiro Editor, 1888 - reeditada em 1902, muito melhorada pelo autor. Durante muito tempo esgotado depois da morte de Sílvio Romero, o título ganhou uma terceira edição em 1943, pela Livraria José Olímpio Editora, organizada por Nélson Romero (com a incorporação de trabalhos monográficos esparsos), em cinco volumes. Em 1980, foi lançada a sua sétima edição.
Rejeitando as teses românticas e indianistas, Sílvio Romero propôs vigorosamente uma abordagem da obra em função das realidades antropológica e social, vistas como fatos primeiros e inarredáveis. Ou seja, o pensamento romeriano no que diz respeito às letras brasileiras, resume-se nos seguintes pontos básicos: determinismo bio-sociológico, evolucionismo e crítica externa X crítica retórica.
As suas antecipações corajosas, os seus rasgos de pioneiro, as suas investigações nos revelou um Brasil ainda desconhecido, introduzindo no estudo da literatura nacional os novos rumos críticos, as novas preocupações de exegese científica, os novos métodos, que abririam caminhos, indicando rumos e semeando idéias para a evolução do pensamento brasileiro.
Sobre a evolução do pensamento de Sílvio Romero, escreveram Gilberto Freyre, Pedro Calmon, João Ribeiro, Luís da Câmara Cascudo, Afrânio Coutinho, Hermes Lima, dentre outros. No tocante à crítica literária, mereceu estudo importantíssimo em 1945 (hoje disponível na Editora da Universidade de São Paulo, série Passado & Presente, teses, 1988), assinado pelo professor Antônio Cândido - O método Crítico de Sílvio Romero - tese apresentada no concurso para provimento da cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de São Paulo.
Na monumental História da Literatura Brasileira, onde o autor sergipano traça o mapa cultural do país, partindo das contribuições populares, está registrado no prólogo da primeira edição que “Este livro é um livro de amor, feito por um homem que sente há perto de vinte anos, sobre o coração, o peso do ódio que lhe tem sido votado em sua pátria...”
Sílvio Romero é hoje justamente reverenciado por idéias ousadas para seu tempo e centrais para o nosso momento literário. Esse reconhecimento que ora registramos é um toque de gratidão pelo legado desse magistral escritor sergipano. Por tudo isso é que ele precisa ser reeditado no momento em que se aproximam as comemorações alusivas à passagem dos seus 150 anos de nascimento, não como uma “exumação” ou “glorificação”, mas com a objetividade de proporcionar aos estudiosos um dos mais importantes textos da literatura brasileira.
Em 1873, quando Sílvio Romero mergulha em suas próprias predileções, promovendo-as a motivo de análise - à época, nada possuíamos no campo dos estudos do folclore, que não passava de uma curiosidade. Colocá-lo como um tema digno de uma outra preocupação além disso, era encarado como uma pilhéria para a inteligência da época. O folclore, assim, lhe deve as primeiras coleções de cantos e contos, as explicações iniciais das escolas que surgiram, cabendo-lhe a glória de haver enfrentado a indiferença e a ignorância, defendendo-o com a veemência e o entusiasmo que lhe era uma constante psicológica.
A partir de 1879, residindo no Rio de Janeiro, durante um ano, Sílvio Romero publica na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil, reunidos depois nos volumes Estudos Sobre a Poesia Popular no Brasil (1870-1880), contribuição para o estudo do folclore nacional, Rio, Tipografia de Laemmert & Cia., 1888. Já no capítulo VII de sua História da Literatura Brasileira vamos encontrar as bases do estudo folclórico, bem como os lineamentos doutrinários. Romero coligiu nos Cantos Populares do Brasil o material esparso e iniciou nos Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil o método, mostrando como o nosso patrimônio popular é mais rico do que o dos portugueses, por ter reunido este ao dos índios e negros.
Justamente na poesia popular se encontra muito do que é representativo, por sua originalidade, espontaneidade do espírito da nossa gente. E Sílvio Romero, desde 1869/1870, compreendeu que o romantismo estava agonizante: “Pressenti, logo, a importância extraordinária do conhecimento da psicologia popular como fator das criações literárias e empreendi colecionar o nosso folclore, de que dantes não tínhamos quase conhecimento algum”. Nessa pesquisa, o historiador sergipano analisa o folclore brasileiro, a literatura oral em plano sistemático: poesia, teatro tradicional, orações, jogos infantis e cantos.
Apesar de sua inquestionável importância, para se ter uma idéia, a segunda edição dos Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil, saiu em 1977, pela Editora Vozes, em convênio com o Governo do Estado do Sergipe, coleção Dimensões do Brasil, ou seja, levou, 90 anos esgotada. Há uma outra edição mais recente, publicada pela Itatiaia, mas nem sempre acessível ao público interessado.
De Sílvio Romero pouco há que dizer, tanto que já se falou a seu respeito, tanto que já se escreveu sobre sua obra variada. Essa figura de verdadeiro gigante do pensamento na América Latina - ainda pouco conhecido fora das fronteiras da terra brasileira ou, quando muito, da língua portuguesa - procurou em toda sua obra saber a origem da nossa nacionalidade e os elementos de que ela dispunha na atualidade para sobreviver no futuro com caráter próprio.
Foi ele, ainda, o maior divulgador de idéias e agitador cultural, seja através do estabelecimento de polêmicas, seja por meio de artigos vivos, numa intensidade que durou toda a sua existência.
A sua cultura diversificada - ciências políticas e sociais, etnologia, cultura científica, a mais moderna no seu tempo - aliada a uma inclinação irresistível para o estudo da literatura e da cultura de seu país, veio dar se não o maior crítico, mas, sem dúvida, o maior historiador de nossa formação. Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil são a obra mais séria de Sílvio Romero, assim como a História da Literatura Brasileira.

A interpretação do Brasil
Quando no final do século passado Sílvio Romero procurava compreender o “atraso do povo brasileiro”, de uma certa forma, ele estava inaugurando uma vigorosa corrente de pensamento que buscava entender a questão da identidade nacional na sua correlação com o exterior. É claro, essa interpretação se fundamentava na ideologia da época, para a qual o conceito de raça, e de clima eram essenciais: “... todo problema histórico e literário há de ter no Brasil duas faces principais: uma geral e outra particular, uma influenciada pelo momento europeu e outra pelo meio nacional, uma que deve atender ao que vai pelo grande mundo, e outra que deve verificar o que poder ser aplicado ao nosso país”.
Em seus estudos folclóricos, Sílvio Romero traz uma preocupação fundamental, que é a problemática nacional, a de se construir uma nacionalidade que não existe ainda em sua totalidade, mas que se pretende consolidar como realidade histórica, cujo objetivo fundamental é estabelecer o terreno da nacionalidade brasileira, voltando para o cruzamento do negro, do branco e do índio, na busca de uma identidade nacional.

Em 1876 passa pelo Rio de Janeiro, com destino a Parati, onde foi nomeado juiz municipal. Três anos depois, ao mudar definitivamente para Corte, obtém a cátedra de Filosofia do Colégio Pedro II, através da defesa da tese Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos (1880).
No Rio de Janeiro, viveria do magistério - ensinando também na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais - e da pena, inclusive, a sua vasta e importante obra crítica, que o caracterizou como árdego polemista, cioso de reivindicar a prioridade da Escola do Recife na renovação da intelectualidade brasileira e a superioridade de Tobias Barreto sobre seus contemporâneos, notadamente Castro Alves (1847-1871) e Machado de Assis (1839-1908).
Em 1901, Sílvio Romero viaja à Europa e, por indicação da Universidade de Coimbra, é agraciado pelo rei Dom Carlos I, de Portugal, com a Ordem de São Tiago. Ainda, passa a ser sócio da Academia de Ciências de Lisboa e do Instituto de Coimbra, em 1902.
Em 1906, recebeu o autor de Os Sertões, Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras. Adoentado - foi jubilado do Colégio Pedro II em 1910 - tenta uma estação de cura em Juiz de Fora, Minas Gerais. De volta ao Rio de Janeiro, morre o escritor no dia 18 de julho de 1914.
Sua obra participa do esforço de revisão ideológica de que brotou o pensamento moderno do Brasil - pode-se dizer, sem medo, que lançou bases mais sólidas para a compreensão da nossa literatura: Poesia Contemporânea (1869), A Filosofia no Brasil (1878), Cantos do Fim do Século (1878), Introdução à História da Literatura Brasileira (1882), Cantos Populares do Brasil (1883), Ensaios de Crítica Parlamentar (1883), Últimos Arpejos (1883), Valentim Magalhães (1884), Estudos de Literatura Contemporânea (1885), Etnografia Brasileira (1888), Luís Murat (1893), Doutrina Contra Doutrina - O Evolucionismo e o Positivismo no Brasil (1894), Ensaios de Filosofia do Direito (1895), Machado de Assis (1897), Ensaios de Sociologia e Literatura Brasileira (1901), Evolução do Lirismo Brasileiro (1905), América Latina (1906), Minhas Contradições (1914), dentre outros.
Foi notável a sua contribuição no campo da historiografia literária que, a partir dele, passou a utilizar novos métodos de análise crítica com base, sobretudo, no levantamento sociológico. Sílvio Romero foi o primeiro grande crítico e fundador da crítica no Brasil.
A História da Literatura Brasileira é a sua principal demonstração de amor à cultura brasileira, publicada pela primeira vez em dois volumes - Rio de Janeiro, B. L. Garnier, Livreiro Editor, 1888 - reeditada em 1902, muito melhorada pelo autor. Durante muito tempo esgotado depois da morte de Sílvio Romero, o título ganhou uma terceira edição em 1943, pela Livraria José Olímpio Editora, organizada por Nélson Romero (com a incorporação de trabalhos monográficos esparsos), em cinco volumes. Em 1980, foi lançada a sua sétima edição.
Rejeitando as teses românticas e indianistas, Sílvio Romero propôs vigorosamente uma abordagem da obra em função das realidades antropológica e social, vistas como fatos primeiros e inarredáveis. Ou seja, o pensamento romeriano no que diz respeito às letras brasileiras, resume-se nos seguintes pontos básicos: determinismo bio-sociológico, evolucionismo e crítica externa X crítica retórica.
As suas antecipações corajosas, os seus rasgos de pioneiro, as suas investigações nos revelou um Brasil ainda desconhecido, introduzindo no estudo da literatura nacional os novos rumos críticos, as novas preocupações de exegese científica, os novos métodos, que abririam caminhos, indicando rumos e semeando idéias para a evolução do pensamento brasileiro.
Sobre a evolução do pensamento de Sílvio Romero, escreveram Gilberto Freyre, Pedro Calmon, João Ribeiro, Luís da Câmara Cascudo, Afrânio Coutinho, Hermes Lima, dentre outros. No tocante à crítica literária, mereceu estudo importantíssimo em 1945 (hoje disponível na Editora da Universidade de São Paulo, série Passado & Presente, teses, 1988), assinado pelo professor Antônio Cândido - O método Crítico de Sílvio Romero - tese apresentada no concurso para provimento da cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de São Paulo.
Na monumental História da Literatura Brasileira, onde o autor sergipano traça o mapa cultural do país, partindo das contribuições populares, está registrado no prólogo da primeira edição que “Este livro é um livro de amor, feito por um homem que sente há perto de vinte anos, sobre o coração, o peso do ódio que lhe tem sido votado em sua pátria...”
Sílvio Romero é hoje justamente reverenciado por idéias ousadas para seu tempo e centrais para o nosso momento literário. Esse reconhecimento que ora registramos é um toque de gratidão pelo legado desse magistral escritor sergipano. Por tudo isso é que ele precisa ser reeditado no momento em que se aproximam as comemorações alusivas à passagem dos seus 150 anos de nascimento, não como uma “exumação” ou “glorificação”, mas com a objetividade de proporcionar aos estudiosos um dos mais importantes textos da literatura brasileira.
Em 1873, quando Sílvio Romero mergulha em suas próprias predileções, promovendo-as a motivo de análise - à época, nada possuíamos no campo dos estudos do folclore, que não passava de uma curiosidade. Colocá-lo como um tema digno de uma outra preocupação além disso, era encarado como uma pilhéria para a inteligência da época. O folclore, assim, lhe deve as primeiras coleções de cantos e contos, as explicações iniciais das escolas que surgiram, cabendo-lhe a glória de haver enfrentado a indiferença e a ignorância, defendendo-o com a veemência e o entusiasmo que lhe era uma constante psicológica.
A partir de 1879, residindo no Rio de Janeiro, durante um ano, Sílvio Romero publica na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil, reunidos depois nos volumes Estudos Sobre a Poesia Popular no Brasil (1870-1880), contribuição para o estudo do folclore nacional, Rio, Tipografia de Laemmert & Cia., 1888. Já no capítulo VII de sua História da Literatura Brasileira vamos encontrar as bases do estudo folclórico, bem como os lineamentos doutrinários. Romero coligiu nos Cantos Populares do Brasil o material esparso e iniciou nos Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil o método, mostrando como o nosso patrimônio popular é mais rico do que o dos portugueses, por ter reunido este ao dos índios e negros.
Justamente na poesia popular se encontra muito do que é representativo, por sua originalidade, espontaneidade do espírito da nossa gente. E Sílvio Romero, desde 1869/1870, compreendeu que o romantismo estava agonizante: “Pressenti, logo, a importância extraordinária do conhecimento da psicologia popular como fator das criações literárias e empreendi colecionar o nosso folclore, de que dantes não tínhamos quase conhecimento algum”. Nessa pesquisa, o historiador sergipano analisa o folclore brasileiro, a literatura oral em plano sistemático: poesia, teatro tradicional, orações, jogos infantis e cantos.
Apesar de sua inquestionável importância, para se ter uma idéia, a segunda edição dos Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil, saiu em 1977, pela Editora Vozes, em convênio com o Governo do Estado do Sergipe, coleção Dimensões do Brasil, ou seja, levou, 90 anos esgotada. Há uma outra edição mais recente, publicada pela Itatiaia, mas nem sempre acessível ao público interessado.
De Sílvio Romero pouco há que dizer, tanto que já se falou a seu respeito, tanto que já se escreveu sobre sua obra variada. Essa figura de verdadeiro gigante do pensamento na América Latina - ainda pouco conhecido fora das fronteiras da terra brasileira ou, quando muito, da língua portuguesa - procurou em toda sua obra saber a origem da nossa nacionalidade e os elementos de que ela dispunha na atualidade para sobreviver no futuro com caráter próprio.
Foi ele, ainda, o maior divulgador de idéias e agitador cultural, seja através do estabelecimento de polêmicas, seja por meio de artigos vivos, numa intensidade que durou toda a sua existência.
A sua cultura diversificada - ciências políticas e sociais, etnologia, cultura científica, a mais moderna no seu tempo - aliada a uma inclinação irresistível para o estudo da literatura e da cultura de seu país, veio dar se não o maior crítico, mas, sem dúvida, o maior historiador de nossa formação. Estudos Sobre a Poesia Popular do Brasil são a obra mais séria de Sílvio Romero, assim como a História da Literatura Brasileira.

Centenário


As comemorações do centenário de Sílvio Romero (1851-1951), crítico, historiador, folclorista e filósofo, teve ampla divulgação no Diário Oficial do Estado de Sergipe. A Semana de Sílvio Romero foi marcada com um coquetel na tarde do dia 18 , no Cassino da Atalaia, oferecido pela Prefeitura Municipal de Aracaju, sob o comando do prefeito Aldebrando Franco de Menezes, oferecido aos ilustres visitantes, que vieram homenagear a memória de Sílvio Romero. O Diário Oficial de 21 de abril, registra que:

”Foi, sem dúvida, uma festa distinta e agradável, à que estiveram presentes o Governador Arnaldo Rollemberg Garcez e sua exma. Consorte, D. Maria Augusto Garcez, Professor Nelson Romero, digníssima senhora e filhas, D. Helena de Magalhães Castro, Prof. Luiz da Câmara Cascudo, Dr. Floriano Azevedo, Prof. Augusto Alexandre Machado, Deputado Sílvio Teixeira, Presidente da Assembléia Legislativa, Secretários de Estados, auxiliares do Governo, deputados estaduais, Vereador Teixeira Machado, Presidente da Câmara Municipal de Aracaju e uma comissão daquele órgão, Diário de Sergipe, O Nordeste, Sergipe-Jornal e o Debate, estudantes de Sergipe e elementos de projeção em nossos círculos intelectuais, comerciais, industriais e sociais, especialmente convidados.”

Neste mesmo dia, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe realizou um Conferência presidida pelo Governador Arnaldo Rollemberg e estando presente o dr. Gentil Tavares da Mata, representante do Ministro de Educação e Saúde, altas autoridades civis, militares e eclesiásticas, visitantes de Sergipe, como a delegação da Faculdade de Direito da Bahia, chefiada pelo professor Augusto Machado, mocidade estudantil, representantes de instituições culturais e científicas, e jornalistas. As solenidades de 21 de abril, dia do centenário de Sílvio Romero iniciaram com uma missa, às 9 h na catedral Diocesana. A noite foi realizada no IHGS a 5. Conferência da série promovida pela Comissão do 1. Centenário de Sílvio Romero. O orador oficial da noite foi o folclorista Luiz da Câmara Cascudo.

“Sua conferência, em estilo professoral, foi uma magnifica lição sobre onde foi evidentemente demonstrado o caráter científico deste ramo de conhecimento, por muito ainda confundido como assunto de mera graça ou curiosidade. Mostrou o orador as raízes do folk-lore, em suas relações com a mitologia e mais ainda, como sobrevivência da cultura dos povos, através das lendas, dos contos, das cantigas, dos costumes, do proceder comum e rotineiro do povo; das crenças, dos mitos, da arte culinária, das modas e usos.
Mostrou as íntimas relações do folk-lore com a antropologia cultural, e como se torna indispensável um estudo sistemático do assunto, numa correlação de pesquisas que devem ser levadas a cabo em todas as regiões e estados do Brasil.
Revelou, depois, como o folclore, mostra, aos olhos do pesquisador, a inegável relação entre a nosso cerâmica modesta das nossas feiras e os objetos que ele viu, no Egito e alhures, como demonstração irrefutável de um traço de união, no espaço e no tempo, que é necessário examinar mais cuidadosamente, para solução integral dos termos do problema.
Por fim, referiu como Sílvio Romero, o polígrafo, o pensador e o mestre, o crítico e o escritor, teve a intuição genial de antever a sistemática folclorista de, sozinho e ainda sem a compreensão acolhedora de intelectualidade de seu tempo, realizar uma tarefa ciclópica, na colheita de um enorme acervo de material folclórico, com seus trabalhos Cantos Populares, Contos Populares e tantos outros. Sílvio estudou o povo, não na deturpada acepção política que hoje emprestam ao termo, mas no significado cultural da expressão, procurando no homem comum de Sergipe, seja do Brasil os extratos de culturas milenares, que no país se fundiram miraculosamente, com as contribuições européia -lusitana, africana e ameríndia.” (Diário Oficial de 24 de abril, 1951).

As comemorações do Centenário de Sílvio Romero prosseguem na tradicional e florescente cidade de Lagarto, onde nasceu o homenageado. As 5 h da manhã a Lira Popular fez ruidosa alvorada, e as 9 h missa celebrada pelo vigário da Paróquia Monsenhor João de Souza Marinho, na Matriz de N. S. Da Piedade Às 15 h chegava a caravana do Governador Arnaldo Garcez, que levava consigo secretários de Estado, auxiliares e visitantes:

“Diretores de Repartições, delegações da Academia Sergipana de Letras, Instituto Histórico , União dos Estudantes Secundários de Sergipe, Casa do Livro de Capela, Academia Norte-Riograndense de Letras, Faculdade de Direito de Sergipe, Grêmio Cultural Clodomir Silva, Faculdade de Direito da Bahia e outras pessoas especialmente convidadas.
Por singular coincidência, era aquela a primeira excussão do Governador Arnaldo Rollemberg Garcez ao interior, o que o vinculava para sempre aos majestosos cometimentos da inteligência a cultural sergipana.” (Diário Oficial, de 25 de abril, 1951).

No palanque oficial, onde se encontravam o Chefe do Governo, Cel. D'Avila Garcez, o Prefeito Alfredo Batista, o Presidente da Assembléia, Deputado Sílvio Teixeira e outros. O Desembargador Enoch Santiago leu o seu trabalho sobre Sílvio Romero, acurado estudo da obra do conterrâneo. Seguiram-se outro oradores como Helenita Souza Santos, pelo Grupo Escolar Sílvio Romero; o acadêmico José de Araújo Barroso em nome da Faculdade de Direito de Sergipe; Maria Helena Dantas pelo Educandário N. S. Da Piedade; Acadêmico Carlos Brandão pelo Delegação da Faculdade de Direito da Bahia.
A noite foi oferecido ao Governador do Estado, um jantar ao som do Jazz da Lira Popular:

“O poeta Freire Ribeiro, com os arroubos de sua conhecida eloquência saudou o Rio Grande do Norte, ali representado pelo Professor Dr. Luiz da Câmara Cascudo, figura de enorme projeção no cenário intelectual brasileiro, que , em agradecimento, enalteceu a pessoa do Governador Arnaldo Rollemberg Garcez e o seu amor às causas culturais, acentuando que, uma das suas mais vivas impressões de Sergipe, foi, sem dúvida, o mavioso aêdo Freire Ribeiro. O festejado intelectual potiguar terminou com um hino à terra-berço de Sílvio Romero.
Levanta-se depois o Governador Arnaldo Garcez, e, dirigindo-se ao Prefeito, agradece-lhe as homenagens recebidas em Lagarto, saudando-o na inteligência , cultura e integridade do Dr. Enoch Santiago, juiz modelar, que é uma glória para Sergipe. Perolando, o chefe do Governo afirmou que jamais esquecerá Lagarto, que há de ser o ponto de partida do seu Governo.” (Diário Oficial, de 25 de abril, 1951).