segunda-feira, 5 de julho de 2010

UM POETA RUSSO NA BAHIA: IEVTUSCHENKO

GILFRANCISCO: jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. gilfrancisco.santos@gmal.com
Ao poeta Damário Dacruz

Célebre aos 34 anos, seu nome rompeu uma muralha de silêncio que muitos outros, injustamente, não quiseram ou puderam romper. Ievtschenko abalou os meios editoriais e políticos do Ocidente empunhando a bandeira do anti-stalinismo. Poeta mais popular da Rússia e o mais conhecido no Ocidente depois de Maiakóvski, aos 53 anos de idade, chegou pela primeira vez no Brasil a convite da Fundação Rio/Arte, onde participou de um recital na Casa de Cultura Lauro Alvim, em Ipanema. Depois de passar pelo Rio de Janeiro, chega finalmente a Salvador para um recital na Reitoria da Universidade Federal da Bahia e participará da inauguração da Fundação Casa de Jorge Amado, seguindo para Recife e São Paulo. Estive por várias vezes com o poeta em Cuba e ao chamá-lo de revisionista o deixou bastante irritado. Este rebelde irreverente, que tem criticado a burocracia estatal de seu país, é um ídolo popular na União Soviética e têm publicado mais de 200 livros em dezenas de idiomas. No Brasil, Ievtuschenko tem somente três livros publicados (1)

Nascido em Zimá, pequena cidade camponesa da Sibéria, situada na região de Urkutsk em 18 de julho de 1933. Ievgueni Ievtuschenko, filho do geólogo Alexandr Gangus e de uma geóloga, que mais tarde se tornaria cantora profissional. Sendo o futuro poeta, neto por parte da mãe de um guerrilheiro siberiano que chegou a ser general do Exercito Vermelho, e fora executado durante os expurgos políticos de 1938. Ievtuschenko fez curso secundário em Moscou por volta de 1944, e sempre orgulhou – se em ser mau aluno e grande vagabundo, e se distingue dos demais pelas más notas e péssima conduta, no que resultou sua expulsão, sendo obrigado a retornar a Kasachstah, onde seu pai trabalhava juntamente com um grupo de geólogos.
De volta a Moscou, o distanciamento da mãe e o inter-rompimento dos estudos, o leva a escrever suas primeiras poesias e aos dezesseis anos, publica seu primeiro poema, em o Pensamento Soviético. Só a partir desta publicação é que Ievtuschenko dedica – se exclusivamente aos estudos literários devorando Joyce, Faulkner, Proust, Hemingway, Rimbaud, Baudelaire, Varlaine, Eliot, Rilke e os clássicos russos, todos conseguidos através de amigos. Em 1952, apareceu sua primeira coleção de poemas Exploradores do Futuro, seguidos de A Terceira Neve; Estação de Zimá, 1955, autobiografia que o tornou famoso da noite para o dia e um ano depois O Rastro dos Entusiastas.
Durante os anos de 1953 – 1954, ocorrem na Rússia à primeira controvérsia pós- staliana, quando as discussões críticas – literárias surgiram entre o partido e os intelectuais, o que levou a realizar – se em dezembro desse ano, o II Congresso Geral dos Escritores, tendo como resultado a reabilitação de vários escritores vítimas dos expurgos stalinistas, e dois anos depois a euforia revisionista chegava ao auge, tornando – se líder da juventude soviética, inconformada com os resquícios stalinistas.
Com Nikita Kruscheve, que em 1956 denunciou os abusos cometidos durante os anos em que Stalin estivera no poder, assistiu-se ao período de relativa distensão que ficou conhecido como “degelo”. Surgiram os poemas de protesto de Ievguêni Ievtuschenko, que ousou tocar em chagas da história soviética das quais era tabu falar, como o massacre de judeus na ravina Baby Iar, durante a Segunda Guerra Mundial. O poema Medo, originalmente publicado na revista “Jovem Guarda”, em 1966 é um desses textos que denunciam o horror da repressão:


O medo está morrendo na Rússia,
como os fantasmas dos anos passados;
de vez em quando, no adro das igrejas,
ainda pede esmola qual mendiga.

Mas eu me lembro quando ele era forte
e sua falsidade triunfava.
Em cada andar dos prédios se esgueirava
sua sombra, em toda parte penetrando.

Tornava a todos nós obedientes;
Nas coisas todas punha o seu selo;
fazia-nos gritar quando era a hora
de calar; e calar na vez do grito.

Isso tudo, hoje em dia, está distante.
Estranho hoje é lembrar como temíamos,
em segredo, que nos denunciassem,
que viessem bater à nossa porta.

E o medo de falar com um estrangeiro?
E o medo de falar com sua mulher?
E o medo ilimitado de ficar
sozinho e em silêncio em meio à praça?

Ninguém temia andar no nevoeiro,
nem enfrentar as balas na batalha.
Mas tínhamos o medo, tão freqüente
e mortal, de falar conosco mesmos.

[...]


Eu queria que o medo que tivéssemos
fosse o de condenar sem julgamento,
de degradar idéias com mentiras
e, com mentiras, exaltar pessoas,

o medo de ficar indiferente
quando alguém sente dor, é perseguido,
o medo de não sermos destemidos
quando pintamos ou quando escrevemos.
Em 1957, Ievtuschenko é expulso do Komsomol e da Escola Superior, primeiro por não pagar pontualmente sua cota e segundo por não freqüentar assiduamente as aulas. Neste ano, publica A Promessa e atrai à atenção dos leitores, uma combinação de lirismo sutil com um fervente caráter publicitário. Um fato curioso ocorreu em 1962 quando o poeta publicou os livros: Ternura e Com o Braço Estendido, e de maneira surpreendente foi feita uma tiragem de cem mil exemplares, quando o habitual seria dez mil. Na realidade Ievtuschenko era mais uma vez protegido por revisionistas, pois durante o governo de Kruschev, era um colaborador interessante, desenvolvendo uma atividade criadora intensa, o que não aconteceu com seu sucessor. Depois dos acontecimentos de 8 de março do ano seguinte, quando realizou – se o II Encontro dos Dirigentes do Partido e do Governo com escritores e artistas, Kruschev discursa contra o liberalismo político – cultural, confessando partidário das tradições do realismo socialista, proclamando guerra contra o formalismo na arte.
A má conduta dos escritores que viajaram ao exterior, tais como Vozniessiênski, Paustouski, Nekrassov, Kataiev, sobretudo Ievtuschenko, não havia correspondido com a confiança que Kruschev esperava, pois tiveram várias oportunidades de viajarem ao estrangeiro: América, Cuba, Alemanha, França e outros países. Ievtuschenko por onde passou, fez propaganda de um comunismo revisionista, liberal, provocando confusas idéias, concedendo entrevistas e escritos biográficos para jornais e revistas, relatando acontecimentos repugnantes, inclusive atacando severamente Ehrenburg. Motivado principalmente pelas suas memórias Homens, anos e Vida, que teve início à publicação em agosto de 1960 na revista soviética, Novo Mundo e, por fim favorecido por sua coexistência intelectual e ideológica imprevisível, fora convertido tanto no Oriente como no Ocidente, em símbolo do conflito de toda geração.
Tanto Ievtuschenko como Vozniessênski e Akssionov, pertencentes ao vanguardismo literário soviético, tentarão desesperadamente retomar seus nomes literários, mas quase em vão. Ievtuschenko publicou vários poemas comovedores e partes de uma epopéia em versos, renunciando sua Autobiografia Precoce, publicada na França em 1963, onde ele não perdoa ninguém: os cínicos, os burocratas, os arrivistas o Partido. É a visão de um poeta que ama a sua pátria e procura distinguir o povo da classe governante que o proletariado se divorcia. São relatos das suas experiências no campo político e literário. Suas descobertas, que ele precisou percorrer toda a União Soviética para buscar sua identidade de poeta. Nela, esforça-se muito para opor ao conceito de poesia maldita e de poeta “fora da lei” e de poeta-funcionário. Ievtuschenko frisa do livro o contraste citando alguns poetas russos que viveram para a poesia e por ela morreu: Puchkine e Lermontov, mortos em duelos; Blok, morto num incêndio que dissimulou suicídio; Iessienin, enforcado e Maiakóvski morto com um tiro no ouvido.
Andrei Vozniessênki escreveu o poema Lenjumeau, uma louvação a Lenin, e o último, Vassili Akssionov publicou a novela Já é Hora Amigo, Já é Hora. Acusados publicamente de partidários ideológicos do Ocidente, e Ievtuschenko desmascarado, o poeta de Zimá confessou seu arrependimento, fato que levou Kruschev a proibir os recitais e viagens temporariamente ao estrangeiro. A 20 de dezembro de 1964, se celebrou em Moscou o dia da poesia, onde são feitos anualmente os recitais de poesia, quando Ievtuschenko recitou seus poemas e de Vladimir Maiakóvski, diante de trinta mil pessoas ocasião em que foi homenageado pelo grande compositor Schostakovisch, quando este dedicou – lhe uma sinfonia sobre um dos mais conhecidos poemas Babi Iar, sendo o poeta bastante aplaudido como de costume.
Ievguêni Ievtuschenko foi o maior portador de todos os germes infecciosos do revisionismo, seus poemas anti – stalinista, são bastante agressivos em relação à obra de Solschenizn – Um dia na Vida de Ivan Denissovich, ou do pequeno livro de poemas de Akhmatova – Requiem, publicado em 1963 e Minik, pela Editora dos escritores emigrantes, sem o seu conhecimento e consentimento:

Não, não sou eu, és outro quem sofre.
Não pode ser eu.
Tudo está embrulhado até a eternidade,
E eu já não sei
Quem és homem ou animal.

Vejamos este fragmento de um dos seus poemas mais polêmicos, intitulado Os Herdeiros de Stalin, publicado em 21 de outubro de 1962 no Pravda, depois de ter percorrido várias redações para publicá-lo:

Em troca me volto ao Partido com Inquietude,
Não replicarei minha súplica:
Redobra a guarda,
Triplica – lhe diante de seu mausoléu,
Para que Stálin permaneça sempre dentro.
E com ele, o que deve pertencer ao passado.

Sem dúvida Ievtuschenko é o mais famoso poeta soviético, oportunista, conspirador e revisionista. Um poeta portador de uma forte dosagem de insegurança interior e acomodações sentimentais, mas favorecido pela sua jovem vitalidade estridente, conduta duvidosa e tática hábil, o fez nomeado como membro da União de Escritores Soviéticos e diretor da revista Yunost (Jovem Guarda), conseguindo ainda ingressar de maneira surpreendente como estudante no Instituto Gorki de Literatura, apesar de não possuir o secundário completo.
Esta figura excêntrica e polêmica até os dias atuais nos fazem refletir profundamente diante de uma extensa produção: A Macieira (1959); A Central Hidroelétrica de Bratsk (1965) e uma coletânea de poemas; O Braço de Linha (1966) e ano seguinte à narração Pear, Habour. O poeta chileno Pablo Neruda em um de seus poemas a ele dedicado descreve-o muito bem:

Ievtuschenko, és um louco,
és um clown, é o que todos dizem entre dentes.
Vem Ievtuschenko,
vamos não conversar,
já falamos tudo
antes de chegar a este mundo,
e há em tua poesia
raios de luz nova,
pétalas eletrônicas,
locomotores,
lágrimas,
e de vez em quando opa! Avante! Abaixo!
Tuas piruetas, altas acrobacias.
E por que não um palhaço?
Em 1984, Ievtuschenko publicou um simpático romance em que traça um retrato sutil da realidade contemporânea da extinta URSS, num momento em que os dogmas socialistas são questionados e o comunismo ganha força, sobretudo entre os jovens. Personagem principal o biólogo Ardabiév, acredita ter criado uma nova planta, chamada Ardabiola, capaz de curar o câncer. Preocupado em demonstrar a validade de sua descoberta, luta, no entanto com alguns problemas pessoais, que o colocam frente à burocracia de seu país e o fazem repensar sua postura diante da vida. Ardabiola é um devaneio literário sobre um povo e uma sociedade em transformação.
Ievtuschenko, um dos mais conhecidos poetas contemporâneos e o seguidor da tradição lírica de Maiakóvski. Sua poesia é um manifesto particularmente, de acordo com sua idéia em relação à responsabilidade de todos pelo destino do mundo, incomensurável valor de inter-racionalismo e introduziu audazmente em sua poesia com semelhança pouco empregada anteriormente. Ievtuschenko é o autor do roteiro do filme Sou Cuba, co-produção cubano-soviético, dirigido pelo grande fotógrafo, Mikhail Kalatozov, que mostra a opressão do povo cubano em plena revolução dos anos 60.



A Metade Não Quero de Nada – Ievguêni Ievtuschenko





A metade não quero
de nada.
Dê-me o céu todo.
Toda a terra.
Os mares e os rios, as torrentes das montanhas.
são meus. Não os divido.
Não me seduzirás a vida,
com uma parte.
Tudo por inteiro. Eu poderia com tudo.
Não quero nem parte da felicidade
nem parte da dor.
Quero sim, a metade do travesseiro
donde, emplastro a tua face
como uma pobre estrela fugaz,
brilhando no anel do teu dedo...


(transcriação: Gilfrancisco)



Nota

1. Autobiografia Precoce, Ed. Brasiliense – tradução de Yedda Boechat, 1984; Os Frutos Selvagens, Ed. Nova Fronteira, tradução de 1985; Ardabiola, Ed. Best Seller – tradução de Baby Siqueira Abrão, 1985 e participa com 25 autores da Poesia Russa Moderna, Ed. Brasiliense, tradução. Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, 1985.



Salvador. Correio da Bahia, com o título, Um poeta russo na Bahia, 6 de março, 1987

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