sexta-feira, 27 de maio de 2011

CRÔNICA DE VIAGEM

GILFRANCISCO, jornalista, professor universitário e membro do IHGSE e IGHBA. gilfrancisco.santos@gmail.com

Macchu Picchu, um paraíso perdido


Estive por três vezes em Machu Picchu. A primeira viagem realizada em janeiro de 1974, após retornar do Chile, derrotado pela vitória sanguinária do general Pinoché, sobre o Presidente Salvador Allende, tinha por finalidade a Ilha de Cuba. Seguir de La Paz via Puno até Cuzco, depois até Lima via Aycuchu, Nazca e Ica. Em janeiro de 1980, época em que trabalhava no Ceped – Centro de Pesquisa e Desenvolvimento seguia mais uma vez com destino ao Rio de Janeiro, onde passei alguns dias no simplíssimo e aconchegante apartamento em Ipanema do amigo Max Argolo, um médico militante do PC, de ônibus pela Viação Andorinhas fui até Campo Grande, seguindo depois de trem até a cidade de Corumbá. Depois de conhecer o pantanal matogrossense, cheguei em Puerto Suarez já em território boliviano. No mesmo dia embarquei no Trem da Morte (classe Turística) até Santa Cruz de La Sierra, a terra do Che. A viagem foi um horror: o trem todo cheirava a éter ou acetona, um amontoado de camponeses deitado nos corredores sem iluminação e nas paradas obrigatórias, o exército vasculhava o trem a procura de guerrilheiros ou contrabando. De repente uma voz estridente gritava - de quem é essa vasilha? Ninguém respondia. Uma vez ou outra alguém se identificava, e entre si negociavam o valor da propina. Próximo a Santa Cruz, num pequeno povoado um dos últimos vagões descarrilou. Levamos algumas horas aguardando um guincho para recolocá-lo nos trilhos. Desci do trem e registrei o acidente em fotos.

Um dia após a chegada consegui passagem aérea através da TAB – Transportes Aéreo Boliviano, possuidora de uma frota de velhas aeronaves da Segunda Guerra, adaptadas para a aviação comercial. Por Esse motivo os preços das passagens são acessíveis a classe popular em relação à concorrente LAB - Linhas Aéreas Bolivianas. Um vôo impressionante sobre as Cordilheiras dos Andes. A aeronave chacoalha o tempo todo. Minha poltrona ficava na asa, mas deu para fazer algumas fotos com a velha Kodak caseira. De repente lembrei-me do desastre aéreo ocorrido em outubro de 1972 com um avião bimotor Focker-27, um turboélice (modelo idêntico ao que eu estava) da Força Aérea Uruguaia que levava um time de rugby do Cluber Old Christian Brothers e caiu na Cordilheira dos Andes, no lado Argentino. É aquela partida em Santiago do Chile nunca se realizou. Das 45 pessoas que estava no avião, entre tripulação e passageiros, sobreviveram apenas 16.

Em poucos minutos chegava ao Aeroporto El Alto, de La Paz, cidade situada a mais de 4.000 m de altitude. Seguindo o roteiro do amigo peruano Guilhermo Barreda (projetista do Ceped), comprei passagem até Cuzco nos velhos microônibus da empresa Morales Moralitos. Optei pela via Arequipa, Atico, Nazca, Ica, Lima. A 70 km de La Paz, próximo à margem boliviana do lago Titicaca, sítio de antigas civilizações (Tiahuanaco e berço legendário dos incas) encontram-se as ruínas de Tiahuanaco. Suas pedras ilustram um estilo de construção colossal, retilíneo e austero, visível nas muralhas rigorosamente alinhadas.

É desta época meu segundo encontro com o romancista peruano, aprista (partidário da Aliança Popular Revolucionária Americana) Mario Vargas Llosa, quando estive em sua residência no moderno e luxuoso bairro de Miraflores, em Lima. Cheguei preparado para uma possível entrevista, tinha lido dois dos seus romances, La ciudad y los Perros, livro premiado em 1962 pela Biblioteca Breve e um ano depois pela crítica, e Conversación em La Catedral, ambos emprestados por Guilhermo. Já havia iniciado em fins de 1979 uma camaradagem com o escritor, por intermédio do professor José Calasans durante sua breve estada na Bahia, quando pesquisava sobre Canudos para escrever um dos seus mais importantes romances, A Guerra do Fim do Mundo (a saga de Antônio Conselheiro na maior aventura literária do nosso tempo), publicado em 1981. Havia também recebido da escritora Bella Jozef, estudiosa da literatura hispano-americana, um exemplar do seu livro “O Jogo Mágico” em que dedicara dois capítulos sobre sua obra.

Terceira visita

A terceira viagem a Machu Picchu (dezembro, 1985) foi planejada em Havana, quando retornávamos juntamente com os jornalistas Guido Araújo e Zoraide Vilas-Boas e o saudoso cineclubista Luiz Orlando (falecido), após participamos do VIII Festival Internacional Del Nuevo Cine Latinoamericano la habana.

Após permanecermos por dois dias em Lima, deixamos o Aeroporto Internacional Jorge Chávez, no Aero Peru, com destino a Cuzco com escala em duas outras cidades. Na época o Sandero Laminoso, movimento revolucionário peruano, liderado por Abimael Guzmán, de tendência marxista, fundado em 1970, empregava a tática de guerrilha, com freqüência cometiam atentados a bomba nos trens que ligam Cuzco a Machu Picchu. Esse era um dos motivos que nos assustavam.

Chegamos a Cuzco pela manhã. Do aeroporto seguimos diretamente ao Hotel. Guido não estava nada bem. A todo instante me perguntava já tomei o remédio? – Fique atento com o horário. Você tem que cuidar de mim, não me deixe só. Eram quatro comprimidos: um para pressão, dois para o coração e um para os rins, pois tinha crise de cálculo renal. Tomamos chá de coca e descansamos, para viajarmos no dia seguinte com destino a Machu Picchu. Sim, o remédio, é o chá de coca, necessidade vital para a população andina. A tradição secular do consumo das folhas de coca – mascadas ou aproveitadas em chá – é um constante desafio ao combate à produção e tráfico de cocaína, já que esta planta, matéria-prima para a fabricação da droga, é cultivada em larga escala.

Na parte da tarde visitamos o Convento de São Domingos e alguns museus de arqueologia e de arte religiosa, além da Igreja da Compañía (1651-1668) com sua fachada barroca, situada na Plaza de La Armas, onde encontramos um guia mirim de onze ou doze que falava português e me pediu um dicionário (português/espanhol). Ao retornarmos ao hotel tentei convencer Guido a ficar, mas ele tinha receio de morrer sozinho. Pela manhã, partimos da Estação de San Pedro, através da Empresa Nacional de Ferrocarriles del Peru e viajamos por cerca de três horas pelo Vale de Urubamba até Machu Picchu. Ao descermos do trem fomos cercados por uma dezena de artesãos que tentavam vender seus artigos de pedra sabão, cerâmicas, de prata e de pele de lhama e alpaca, animais que habitam os Andes. Em Águas Calientes pernoitamos numa hospedaria, na base da montanha, onde eu já havia me hospedado anteriormente. Guido Araújo optou pelo hotel que fica no alto da montanha (v. foto). Como já era do meu conhecimento à noite em Águas Calientes é tão fria que dói os ossos, impossível um visitante sobreviver. Por isso convenci a Zozó a dormirmos juntos, de valete e desta forma sobrevivemos e a viaje ficou mais adocicada, mesmo sem ter caqueado.

Enquanto Guido e Luiz Orlando permaneciam bisbilhotando a arqueologia de Machu Picchu eu e Zoraide, juntamente com um guia local, seguimos para Huayna Picchu, montanha (mais alta que Machu Picchu, medindo mais de três mil metros), em torno da qual o rio Urubamba segue seu curso. Levamos mais de duas horas para atingirmos o pico da montanha. Uma subida de difícil acesso, exaustiva, com várias partes escorregadiças e protegidas por cabo de aço, obrigando ao visitante cautela ao andar pelas trilhas, algumas se encontrava interditadas. Do topo vê-se uma beleza extraordinária, visão mágica deslumbrante, você é invadido por um sentimento místico, e não consegue sentir os dentes, o frio cortante parece coagular seu sangue, a falta de ar, uma vontade de morrer ou voar entre as nuvens qual condor. A rarefação do ar nas elevadas altitudes dos Andes pode provocar o soroche – mal-estar de montanha (uma sensação de tortura, calafrios e dor de cabeça).

Hoje chegando aos 60 anos não faria novamente essa caminhada. É tão perigosa, que durante a estação chuvosa, os passeios são fechados. Do cume da montanha a visão que você tem do vale é estarrecedora, impressionante e assustadora. De acordo com o jovem guia Pablito, no topo era residência do sumo sacerdote. Não vi espaço suficientemente para existência de um palácio. Bem próximo ao pico existe uma grande rocha, esculpida no centro, que malmente passa um homem de estatura média.

Cuzco, a capital do império

A cidade de Cuzco era o coração e o centro exato do império. Ao norte ficava a região do Chinchaysuyo (hoje Equador e parte superior do Peru), a oeste o Condesuyo (regiões costeiras), ao sul o Collausuyo (área dos altiplanos da Bolívia e Peru) e a leste o Antisuyo (a região da selva amazônica). Cuzco está num local privilegiado, no início de um desses vales (rio Vilcanota) a 3.400 m de altitude e um dia de marcha de outro vale, o que acompanha o rio Urubanba.

Para se conhecer Machu Picchu é preciso ir à cidade de Cuzco, capital do departamento do mesmo nome, centro da cultura andina no Peru. Quem visita Cuzco pode observar em meio aos prédios da época colonial restos das construções incas: palácios, templos, muralhas de granito, vias pavimentadas. Quase todas as construções, especialmente na área central, foram erguidas sobre fundações feitas pelos incas. Chamam à atenção notável a forma pela qual os incas talhavam e poliam os imensos blocos de pedras usados nas suas construções.

Há quem prefere mergulhar nos mistérios que as montanhas escondem ao percorrer a trilha de pedras justapostas que interliga as ruínas das antigas cidades. Ao final da jornada surge à maravilhosa e imponente Machu Picchu, que guarda os segredos perdidos da impressionante civilização Inca. É possível concluí-la em três dias e necessitará de uma preparação física para percorrer os quase 40 km. Contratam-se guias e carregadores experientes para levar os mantimentos. O primeiro dia percorre-se 14 km é o trecho mais fácil da empreitada, com uma altitude de 600 metros. O segundo dia enfrenta-se 8,5 km, com uma altitude de mais de 2.000 metros. O terceiro e último dia enfrenta-se 17,5 km é a caminhada mais difícil, onde a altitude que varia de 2.700 a 4.000 metros, deixa os andarilhos sem fôlego. Existem no Brasil algumas empresas especializadas em roteiros diferenciados para destinos que reúnem natureza, cultura, aventura e conforto em doses bem equilibradas.

Filhos do Sol

Os Incas adoravam o deus Sol (Inti) e a ele dedicavam festas, rituais e templos que se espalhavam por todo o império. O Sol, deus bom e generoso, casado com a Lua (Killa), era considerado pelos incas como o pai da raça. Todos os soberanos incas eram tidos como representantes de Inti na terra, com exceção de Huayna Cápac, tratado como personificação do próprio deus. Embora o culto a Inti tenha feito dele o deus oficial e unificador de todo o império, os incas adoravam também outras divindades, algumas próprias e outras pertencentes a povos conquistados.

Machu Picchu

Construída planejadamente de acordo com sua organização social, a cidade foi dividida em vários setores, com o bairro industrial, onde funcionava a indústria metalúrgica, o bairro intelectual; e o bairro agrícola, com os seus terraços para agricultura, imensos andares em forma de degraus onde os habitantes cultivam milho e batata entre outros.

Machu Picchu é a maior atração turística do Peru. Trata-se de uma cidade do antigo império Inca, erguida sobre o vale do rio Urubamba a cerca de 2430 metros de altitude, em meados do século XV. Acredita-se que tenha servido como fortaleza de algum monarca, mas até hoje não se sabe exatamente, qual era sua função. Nos seus tempos de glória, estendia-se por uma área de 5 quilômetros quadrados, possuindo templos, moradas e terrenos utilizados para a agricultura. Seus projetistas empregavam técnicas de engenharia avançadas para minimizar o efeito dos terremotos. Após o colapso da civilização inca, Macha Picchu ficou oculta na selva, durante séculos, tendo sido redescoberta em 1911, por acaso, pelo aventureiro norte-americano Hiram Bingham. De inestimável valor arqueológico o local foi declarado patrimônio da humanidade em 1983.

Ainda hoje se discute se a capital religiosa, fortaleza ou centro residencial. As construções demonstram concepções especiais arrojadas e técnicas avançadas de cantaria, com que os incas ficaram famosos como arquitetos. A severidade e a imponência dessa arquitetura parece refletir o caráter guerreiro desse povo. O que se sabe, comprovadamente, a respeito do surgimento dos incas, é que no século XIII eles já habitavam os férteis vales perto de Cuzco, que mais tarde viria a ser a capital do império. Era um grupo dominado por outros povos da região. Com o tempo, porém, graças à sua habilidade militar e à sua organização, os incas acabaram se impondo. São muitos os mistérios que ainda cercam a história desta cidade. Sabe-se que no século XVI foi refúgio da resistência indígena contra a conquista espanhola, depois que Cuzco – a capital do Tahuantinsuyo, como era chamada o Estado Inca – caiu em poder dos conquistadores.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

JORGE AMADO, TRADUTOR DE DONA BÁRBARA

GILFRANCISCO, Jornalista, professor e membro do IHGSE e do IGHBA. gilfrancisco.santos@gmail.com

O romancista Jorge Amaro, esporadicamente exerceu a atividade de tradutor, sendo o responsável pela divulgação de vários escritores hispânicos no mercado editorial brasileiro nos anos quarenta, como o equatoriano Jorge Icaza, o uruguaio Enrique Amorim, o peruano Ciro Alegría e o venezuelano Rómulo Gallegos, de quem traduziu o romance Dona Bárbara. Hoje é possível encontrar a edição da Record, de 1974, revista e readaptada, acompanhada de notas de rodapé.

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O romancista venezuelano Rómulo Gallegos nasceu em Caracas (1884-1969), tornou-se conhecido ao publicar Os Aventureiros (1913), livro de contos, gênero muito limitado para as suas intenções. Dividido entre as duas correntes literárias da época, o Americanismo de crítica social e o Modernismo refinado e exótico da primeira fase. Algumas constantes literárias caracterizam a obra de Rómulo Gallegos, seja referente à estrutura de seus romances, que pouco evoluiu do costumismo russo-espanhol, seja na visão do homem e do mundo americano.

Tendo vivido muitos anos na Espanha, onde publicou vários de seus livros. Foi ministro da Educação (1936-1937) e presidente da República, eleito em 1948. Deposto por um golpe de estado, exilou-se no México. Em 1958, volta para a Venezuela, aclamado herói nacional e o maior escritor do país. Em sua obra, procurou assimilar as peculiaridades da Venezuela, do espanhol falado pelo povo à natureza tropical e as tradições indígenas seu tema principal é o conflito entre civilização e a barbárie. Ficou célebre internacionalmente com o romance, Dona Bárbara, publicado em Barcelona em 1929 e dois anos depois era traduzido ao inglês. Gallegos publicou mais de uma dezena de livros, alguns como: O último sol (1920); A trepadora (1925); Canaima (1932); Cantoclaro (1934); Pobre Negro (1937); O forasteiro (1945); Na mesma terra (1947); A palhinha no vento (1952); Obras Completas (1959).

Dona Bárbara

Dividido em três partes, as duas primeiras contendo treze capítulos e a última quinze, distribuídos em 173 páginas, o romance mescla elementos líricos, costumbristas, psicológicos e sociológicos. Constitui uma das obras mais importantes da literatura latino-americana. A presença de símbolos em sua narrativa telúrica, numa recriação em profundidade: o personagem Santos Luzardo, volta ao lhano para vencer superstições e crendices e o espírito do mal, representado pela “devoradora de homens”, Dona Bárbara.

O romance Dona Bárbara apresenta como cenário as savanas de Apure, localizadas na região de Arauca, Venezuela, cuja produção econômica se baseia na pecuária. Essa narrativa retrata a natureza fundamentada nos ideais positivistas e de pressupostos deterministas. Desse modo, o progresso e civilização são contemplados como instrumentos de redenção para o ambiente e para os homens. Em Dona Bárbara, tanto a natureza quanto os homens são representados como bárbaros, sendo que a natureza abrange uma dinâmica significativa dentro do fio condutor da obra, pois o espaço narrativo é um ambiente que determina e, ao mesmo tempo, conduz as ações das personagens.

Dona Bárbara, uma descendente de índios, é personagem – título do livro. Ela é descrita como uma mulher cruel, não quis filhos para não dar prova do domínio do homem sobre a mulher. Seu principal opositor é Santos Luzardo, retratado no romance como um civilizador. A escritora Bella Jozef observa que Santos Luzardo “personifica a cultura e pretende exercer sua ação educadora nos llanos e terras distantes da civilização, rodeado de forças negativas: superstição, lucro, ignorância, que deve vencer sob pena de ser vencido”.[1] No livro O Jogo Mágico, dando prosseguimentos as suas pesquisas sobre as letras hispano-americanas, Bella Jozef, analisa o romance brasileiro e o ibero-americano na atualidade e compara Gallegos (Dona Bárbara) com Guimarães Rosa (Grande Sertão:Veredas), ao afirmar que em ambos “o homem é ser em luta, o tema e os personagens se alegorizam na aventura do homem que tende a dominar as forças primitivas da natureza para alcançar sua harmonia interior. Apresentam assim, uma visão poética do mundo e do homem americano”.[2]

Tradução

A idéia de tradução desta obra ocorreu após uma viagem que Jorge Amado empreendeu pela América Latina iniciada em 1937. A viagem despertou em Jorge a vontade de divulgar algumas obras hispânicas em solo brasileiro: “Eu realizara longas viagens pelas três Américas, tomara conhecimento das literaturas de diversos países de língua espanhola, fizera-me admirador e amigo de romancistas e poetas. Além de Gallegos, eu propunha fossem traduzidos e editados Jorge Icaza (Huasipungo e en las Calles), Aguilera Malta (Canal Zona), Rivera (La Vorágine), Enrique Amorim (El Caballo y su sombra), para citar apenas alguns”. [3]

Talvez o seu interesse em traduzir Dona Bárbara, resida nas coincidências temáticas e nos propósitos literários entre a referida obra e as suas: denúncia social, renovação da linguagem literária, valorização das tradições culturais e perspectivas ideológicas. Após alguns anos a procura de um editor que pudesse publicar sua tradução, finalmente foi encontrar no Estado do Paraná, uma pequena editora, Guaíra, que se interessou e publicou Dona Bárbara em 1939 e outros títulos recomendados por Jorge, formando uma coleção denominada “Estante Americana”

A partir dessa tradução, Jorge Amado passa a ser o divulgador de obras de autores latino-americanos no Brasil e na década de 1940, época em que se liam, no país, praticamente só obras de origem francesa. A literatura hispânica era desconhecida pela maioria dos leitores e, para muitos, não era possível ler obras em espanhol. Além de ter traduzido para o português, o romance Dona Bárbara, de Rómulo Gallegos, em 1939, Jorge Amado traduziu também outros livros em 1944 para a recém criada Editora Brasiliense dirigida Caio Prado Jr., Arthur Neves, Leonardo Dupré e Monteiro Lobato, alguns títulos como “Minha Mãe, de Cheng-Tcheng e “Terra e Sangue” de Mikhail Chorokhov, livro agraciado com o prêmio Stalin.

Diz-se inclusive, que o ex-presidente venezuelano tinha grande desgosto dessa edição brasileira. Ela não teria sido autorizada, logicamente não teria recebido os direitos autorais, ele a considerava uma das piores traduções feitas no Brasil, de escritores hispano-americanos. Por este motivo, Jorge Amado reeditou o livro, pela editora Record, em 1974, revisando e readaptando a tradução, além das notas esclarecedoras de rodapé.

Do cinema para TV

Dirigido em 1943 por Fernando de Fuentes, tendo como roteirista o escritor de Carlos Fuentes, o longa-metragem mexicano (132 min.), fui um dos grandes sucessos da cinematografia nacional. Dona Bárbara mais tarde transformado em telenovela (CNT) foi exibida e vários países de língua espanhola, com igual sucesso. Os anos 40 e parte dos 50 representam a época de ouro do cinema mexicano e nos outros países da América Latina forjava-se a idéia de um cinema nacional.

O enredo gira em torno de Bárbara Guamarán. Traumatizada no amor, ela decide se vingar de todos os homens que cruzam seu caminho, mas por infelicidade do destino, acaba lutando pelo amor do mesmo homem com sua filha, Marisela. Dona Bárbara torna-se amante de Lorenzo Barquero com a nítida intenção de ficar com sua fortuna. Assim engravida, mas com a maternidade a deixa envergonhada de si mesma e seu rancor contra o homem torna-se cada vez maior, já que um filho significa para ela mais um êxito do macho, renega Marisela, a recém nascida.

Após despojar Lorenzo de seus bens e de sua juventude o abandona, e ele, infeliz e arruinado pelos vícios, é expulso da fazenda com o bebê. Assim, durante anos, tem tratado de espalhar o medo em uma região onde a justiça do homem tem sua própria lei. Sua ambição e sua sêde de vingança não têm limites, mesmo se tratando de sua própria filha. A magia de sua beleza sobrenatural tem lhe servido para conquistar homens e governos. Para ela, não há animal que escape de seu chicote, nem ser humano que fuja de sua crueldade. O que não consegue por meio da força, obtém através de sua melhor aliada: a feitiçaria. Santos Luzardo será o único que terá as armas para domar e derrotar a “devoradora de homens”, como a chamam em sua terra.

Epílogo

Dona Bárbara é um romance que ainda corresponde à atualidade, ou como diz o texto em uma de suas abas: “Dona Bárbara é um livro de vida longa e fama altíssima. É justamente um clássico, isso é, um livro que espelha a verdade sobre a alma e os anseios do povo e da terra que lhe deu origem e, como tal, está destinada a atravessar os tempos como um registro fiel, acentuado pela arte e pela emoção compreensiva, da gente humilde e sofrida que habita os imensos llanos da Venezuela”.


[1] Romance Hispano-americano. São Paulo, Editora Ática, 1986.

[2] O Jogo Mágico. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1980.

[3] Rómulo Gallegos há algo de comum entre os romancistas da América? Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 15 de junho, 1974.

LENITA, ESTRÉIA DO ROMANCISTA JORGE AMADO

GILFRANCISCO, jornalista, professor universitário, membro do IHGSE e IGHBA. gilfrancisco.santos@gmail.com

Lenita, novela escrita por Jorge Amado, Dias da Costa e Edison Carneiro, em sua juventude, publicada em folhetim em 1930 n’O Jornal, de Salvador e um ano depois em volume pelo editor A. Coelho Branco Filho, no Rio de Janeiro, está completando 80 anos.

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Durante as atividades desenvolvidas como pesquisador da Fundação Casa de Jorge Amado no ano de 1989, sendo o responsável pela localização e coleta de todo material escrito por Jorge Amado ou sobre ele, com intuído de copiar, fotografar os referidos textos encontrados nos arquivos públicos ou particulares, além de aquisição das primeiras edições nos Sebos e em poder de colecionados, para serem encaminhados ao DPDOC (Divisão de Pesquisa e Documentação) da FCJA, responsável pela guarda, conservação, organização e divulgação do acervo Jorge Amado, tive a oportunidade de ter em mãos inúmeros documentos do início da carreira do grande romancista baiano.

Foi durante esse período que localizei no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia a coleção do periódico O Jornal (1929-1930, incompleta). Infelizmente, após forte aguaceiro e conseqüentemente o desabamento de parte do telhado do IGHBA, algumas coleções foram perdidas, inclusive O Jornal, mas antes deste lastimável incidente copiei a novela El Rey, bem como todos os textos dos membros da Academia dos Rebeldes publicados na coluna “Jardim Suspenso”. [1] É dessa época a minha primeira leitura da novela. Hoje possuo uma cópia fornecida pelo amigo acadêmico, Renato Berbert de Castro (1924-1999) extraída da edição em forma de livro, publicada em 1931.

Lenita é um livro que nasceu da experimentação literária juvenil de três autores baianos, Dias da Costa (1907-1979), Edison Carneiro (1912-1972) e Jorge Amado (1912-2001), entre o final da década de 20 e o início da década de 30. Ao que tudo indica esta publicação não agradou muito aos leitores da época e certamente menos ainda aos seus autores. Em depoimento à Valdomiro Santana, Jorge afirma que: “minha primeira experiência de romancista foi um fracasso total; aliás, o fracasso foi também do Edison Carneiro e do Dias da Costa, porque em 1929 nos juntamos para escrever para O Jornal um romance folhetim, que era ruim demais, publicado em livro um ano depois com o título de Lenita. Um romance tão ruim que precisou de três autores”.[2] Entrevistado pelo jornalista sergipano Joel Silveira, Jorge fala dessa influência, da semente que o tornaria um dos maiores romancista brasileiros: “Do ginásio caí no jornalismo e na literatura, na cidade de Salvador. Uma literatura danada. Foi por esse tempo que conheci Pinheiro Viegas, que veio a ter em minha vida uma influência decisiva. Era uma figura de mestre, um sujeito encantador”.[3]

Dias da Costa, um dos autores dessa experiência nos conta como foi produzido o pequeno monstro: “Lenita foi uma aventura a três que teve conseqüências graves. Novela escrita na mesa de café gastava doze capítulos para contar a vida, a morte e a sobrevivência de uma prostituta barata, paixão de um sujeito sofisticado e de um arquiteto tuberculoso e exótico. Misto de Pitigrilli e Dumas Filho, a novela Lenita era uma perfeita hediondez. Pois bem, pior que Lenita, escrita de colaboração, foram os artigos perpetrados sobre ela. Publicada em folhetim, sob a cautela de pseudônimos, saiu sempre tão empastelada que, durante meses constituiu para mim fascinante trabalho recortar do jornal, linha por linha, para pô-las em ordem a fim de ler a história em letra de forma. Mas, apesar de tudo, íamos tomando gosto pela literatura à proporção que nos enfarávamos da literatice”.[4]

Em socorro aos amigos massacrados pela crítica, principalmente a do sul do país, como a de Oscar Mendes publicada n’ O Estado de Minas em dezembro de 1931, que apontou vários defeitos na elaboração da novela. Por este motivo saem em suas defesas dois membros da Academia dos Rebeldes. Primeiramente o cronista Machado Lopes que inicia um pequeno artigo publicado em O Momento: “Não enveredarei absolutamente, pelos caminhos da crítica para escrever sobre Lenita. E isso não só porque sou despido de quaisquer pretensões a crítico, como também porque os nomes que fizeram Lenita surgir no teatro da literatura brasileira não precisa dessa corriqueira adjetivação de elogio, tão comum entre nós. Quero apenas congratular-me com a talentosa trindade criadora de Lenita.

Logo, ao ver Lenita, observei uma cousa interessante – fazia aparecer mais uma trindade. Teriam sido os seus autores influenciados pelo instinto, tão baiano, do tradicionalismo? – Não creio. E lembrei-me, então, de que os grandes acontecimentos ou as grandes criações sempre vem ao mundo tangidas pelas mãos das trindades. E nelas há, sempre, o eterno mistério. A identificação do trio numa única pessoa ou num mesmo espírito é o fim por que se desencadeia toda a luta da humanidade”.[5] Já o poeta e cronista Alves Ribeiro, comenta a novela no nº5 da revista, O Momento, com um título bastante sugestivo, a Literatura do Sexo: “Lenita é a história de uma rameira de ínfima categoria que, tornada amante, de um momento para outro, do milionário Alberto Neves, se dá ao luxo de atirar-se em baixo de um automóvel ao ser possuída, em estado de sonolência, por um criado chinês (De resto, a cena é um pouco artificial, e desmente um poço a experiência sexual do autor do capítulo).

Nada mais banal, como se vê. O que torna a leitura interessante (para o público acostumado às diabruras fesceninas de Pitigrille e Dekobra) é a vida escandalosa e irresponsável das personagens da novela. Todos, sem exceção, formam uma bem cuidadosa galeria de psicopatas”.[6]

A aventura de Lenita nasceu na mesa do café Bahia Bar, situado na Praça da Sé, que ficava defronte da velha igreja da Sé, demolida em agosto de 1933. A novela chamava-se inicialmente El Rey. Cada um dos três autores escreveu quatro capítulos, com os seguintes pseudônimos: Jorge Amado (Y. Karl), Edison Carneiro (Juan Pablo) e Dias da Costa (Gluate Duval).[7] Os capítulos à proporção que eram escritos iam aparecendo em folhetim de O Jornal. Dias da Costa fez o primeiro capítulo. Edison carneiro escreveu o segundo, arvorando uma prostituta em heroína da história, e Jorge Amado ao escrever o terceiro capítulo matou a heroína e prostituta, atropelando-a impiedosamente por um automóvel de luxo: (“E sob o peso do auto, livrou-se do peso da vida”). O contista Dias da Costa anos mais tarde diria que a “novela era de uma literatice cachorra e, talvez por isso, os artigos sobre ela escritos foram ainda piores. João Cordeiro, por exemplo, escreveu um ensaio maior do que a novela, tão grande que teve de ser publicado em série, com o clássico continua no próximo número”.[8] A capa apelativa (colorida) apresentava a heroína momento em que ia ser atropelada, vestida apenas com uma transparente camisola de dormir. Diz Jorge Amado que, devido a esta capa o livro teve grande vendagem entre os amantes de literatura fescenina.

Encontrar um exemplar dessa novela hoje seria um grande achado. É considerada uma preciosidade para colecionadores. Alguns dos raros exemplares de Lenita ainda sobrevivem na Bahia, certamente não são muitos. Tenho conhecimento da existência de pelo menos três exemplares da única edição de A. Coelho Branco Filho, 1931: um pertencente ao professor e acadêmico Waldir Freitas Oliveira; outro que se encontra no acervo de obras contemporâneas especiais do CEDIC – Centro de Documentação e Informação Central sobre a Bahia da Fundação Clemente Mariani e finalmente a edição pertencente a Jorge Amado que hoje faz parte do acervo da Fundação Casa de Jorge Amado. Waldir Freitas afirma da existência de mais dois exemplares da novela, um em poder do médico Newton Bastos, filho do poeta Elpidio Bastos, membro de Grupo modernista baiano – Poetas da Baixinha e outro em mãos de familiares do saudoso acadêmico Waldemar Matos.

Aracaju. Jornal da Cidade, 31 de março, 2011.



[1] Salvador. Revisão Revista de Sosigenes Costa. Revista Exu nº 15, maio/junho, 1990. Neste artigo foram publicados vários textos localizados na coluna “Jardim Suspenso” de O Jornal.

[2] Literatura Baiana (1920-1980). Valdomiro Santana. Rio de Janeiro, Philobiblion/INL/ Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.

[3] Com Jorge amado em Vila Isabel. Rio de Janeiro Vamos Ler, 15 de junho, 1939.

[4] O Grupo de Pinheiro Viegas fez o Modernismo na Bahia. Santos Morais. Rio de Janeiro, Jornal Para Todos, Ano II- nº31, 2ª quinzena de agosto, 1957.

[5] Salvador. Lenita, Machado Lopes. O Momento n°4, 15 de outubro, 1931.

[6] Salvador. A Literatura do Sexo, Alves Ribeiro. O Momentonº5, 15 de novembro, 1931.

[7] Jorge Amado publicou seus capítulos n’O Jornal em: 7, 12, 24 e 28 de abril de 1930. Dias da Costa republicou um capítulo na revista Etc. nº 168, 15 de julho, 1931, provavelmente o mês do lançamento do livro, período em que começa a aparecer publicidades de vendas na revista O Momento nº 1, julho, 1931.

[8] Rio de Janeiro. Há quarenta anos na cidade do Salvador. Jornal de Letras, julho, 1967.